Hitler
Hitler foi a única figura da História que concebeu e realizou uma grande revolução, da origem a seu termo, partindo do nada para chegar à criação de um grande império mundial. Possuía notável compreensão das forças com as quais se mediu. Foi um fenômeno histórico horrível, mas destacado.
O Führer
A versão de Alan Wykes para o comportamento de Hitler como Líder do Partido e Ditador, de que ele, quando jovem, fora contaminado pela sífilis, sucumbindo mais tarde aos seus efeitos terciários – irracio-nalidade, irresponsabilidade e falta de comedimento no falar e no agir – tem sido por muita gente contestada. Apesar disso, há fatos em sua vida, pública e privada, que parecem corroborar tal versão. Entretanto, na ausência de provas documentais deste episódio da sua história médica – provas que resistam a um exame judicial – a tese da sífilis deve continuar sendo apenas tese, embora notável.
Todavia, no período vienense, em que se supõe tenha Hitler contraído a doença, indubitavelmente plasmou-se em grande parte a sua perso-nalidade e o gosto irresistível pela destruição. Sabemos agora que a história de um orfãozinho pobre, que viveu terríveis dificuldades, que ele conta no seu livro Mein Kampf, é invencionice. O estado austríaco, pela pensão que lhe pagava como filho de um funcionário público, dava a Hitler toda a chance de se estabelecer confortavelmente na vida. Ele não conseguiu estabilizar-se porque desbaratava o que recebia, e a vida em albergues reles, a que se viu reduzido, parece ter sido da sua escolha. Por motivos facilmente compreensíveis quando se reconhece a intensidade do anti-semitismo predominante em Viena antes da guerra, Hitler culpava os judeus pela sua falta de sucesso e reconhecimento – não em quaisquer termos formulados com precisão, pois sua mente nunca funcionou em linhas precisas – mas em termos que davam aos judeus a responsabilidade por tudo o que era desagradável, injusto e mal organizado que ele via na cidade e, por extensão, sofria na sua própria vida.
O que despertou Hitler da rotina que se impôs de frustração emocional e semi-inanição física foi a Grande Guerra. Ele era nacionalista (embora não fosse patriota, naturalmente, pois odiava o Império Austro-Húngaro) e aceitou avidamente a oportunidade que a guerra lhe oferecia de cruzar a fronteira e ingressar num regimento alemão. Terminada a guerra, sua fo-lha de serviço, sua perspectiva e ambições políticas e seus talentos natu-rais muito grandes bastaram para lançá-lo nos modestos primórdios de uma carreira política, patrocinada pelo exército alemão. Essa relação seria duradoura, embora o exército eventualmente viesse a arrepender-se de tê-la criado.
Todas as relações de Hitler com pessoas, órgãos e instituições da vida alemã têm sido minunciosamente examinadas. Entretanto, nenhuma delas foi tão crítica como as que manteve com o exército. Este lhe permitiu iniciar-se na política e apoiou o seu trabalho de organização do novo partido nazista. Os Freikorps, de onde Hitler atraiu tantos dos seus primeiros e mais dedicados seguidores, não eram mal vistos pelo exército. Mas, como Hitler viria a descobrir amargamente, o exército não toleraria tentativas de conquistar o poder sem sua aprovação específica. Portanto, estava fadado a opor-se à primeira tentativa de Hitler de se tornar senhor da Alemanha – o putsch de Munique de 1923. Ele jamais se esqueceu da lição aprendida a 9 de novembro, quando seus camisas-pardas foram mortos pela polícia: a de que, na Alemanha, o poder pertencia a quem coman-dasse o exército. Fracassando em obter o comando pela força, Hitler pas-sou os anos seguintes tentando consegui-lo pelo voto. Uma vez alcançado o poder, seus primeiros atos visaram a subordinar o exército à sua vontade e não descansou até que, em janeiro de 1938, finalmente achou um pretexto para assumir o cargo de Comandante-Chefe.
Dadas a obscuridade dos seus antecedentes e as dificuldades da sua juventude, é pouco provável que Hitler pudesse ter sentido simpatia ou estima por um grupo de orgulhosos cavalheiros, como era o Corpo de Oficiais alemães. Na verdade, o conflito entre eles era inevitável, pois as idéias dos oficiais sobre a guerra eram ortodoxas, o que não acontecia com as de Hitler. Daí as dissenções freqüentes. Os "efeitos especiais" que acompanhavam seus berros – tremor incontrolável, olhos rolando nas órbitas e boca espumante – pareciam apoiar a opinião de que Hitler era vítima de doença crônica. Todavia, os que o conheciam desde o período de Viena atestam livremente que tais manifestações sempre acompanharam suas reações a qualquer refutação persistente das suas opi-niões. Ele simplesmente não podia ser contrariado, hábito que não o tor-nou querido dos seus camaradas nas trincheiras, mais tarde. Logo, parece provável que, como Führer e Comandante-Supremo, quando todas as res-trições externas ao seu comportamento foram eliminadas, Hitler tenha simplesmente dado rédeas livres a uma característica natural. Além disso, ela sempre teve seu efeito desejado: os generais empalideciam – e calavam-se.
A vítima
O forte é mais forte sozinho – Hitler
Os que dão valor a tais coisas talvez se interessem em saber que o nome Adolfo se origina das duas palavras alemãs que significam "nobre lobo". O sobrenome é uma variação de Hiedler e Hütler, ambos usados pelos antepassados de Adolfo. Hiedler e Hütler estão ligeiramente asso-ciados à expressão "guardião dos Gentios" – que, considerando-se a per-pétua dedicação de Hitler a odiar e atormentar os judeus, não é inadequada, por mais irreal que pareça.
Infelizmente não há nada de irreal sobre a existência de Adolfo Hitler. Ela começou a 20 de abril de 1889, num pequeno hotel em Braunau, na margem austríaca do rio Inn, que ali divide a Áustria da Baviera. A 110 km a oeste fica Munique, capital da Baviera e, atualmente, sinônimo da conferência Paz em nosso tempo, na qual o Primeiro-Ministri britânico Neville Chamberlain se rendeu a Hitler, a 29 de setembro de 1938. A 96 km a leste está Linz, capital da Alta Áustria, onde Hitler freqüentou a escola e absorveu as noções pan-germânicas que alimentaram sua xenofobia fanática.
O pai de Adolfo, Alois Hitler, não tinha fobias nem filias. Era um pequeno funcionário público, lotado no Departamento de Alfândega e Imposto de Consumo. Homem mediano, cabeça redonda como um repolho, ele batia Hindenburg – na época um jovem, famoso e belo oficial do Ministério da Guerra Prussiano – no comprimento dos bigodes, e era inofensivamente vaidoso da sua façanha. Trabalhador consciencioso, fora infeliz na vida doméstica. Sua primeira mulher morreu sem lhe deixar filhos; a segunda faleceu jovem, deixando-lhe dois filhos para criar; a terceira – a mãe de Adolfo – dera-lhe cinco filhos, três dos quais morre-ram na infância. Somente Adolfo e sua irmã. Paula, mais o menino e a menina do segundo casamento de Alois, haviam sobrevivido.
Hoje, porém, depois de tudo o que aconteceu, têm todos o direito de recriminar o destino pela escolha desastrada que fez.
Os Hitler eram católicos romanos – embora não haja evidências de devoção especial na família – e Alois teve de obter dispensa papal para casar com a mãe de Adolfo, Klara Pöltz, porque suas relações de primos em segundo grau estavam dentro dos impedimentos de consangüinidade. Ele era 23 anos mais velho que Klara quando casaram, em 1885, e, ao aposentar-se do serviço público, Adolfo tinha seis anos. No seu livro, Mein Kampf, Adolfo menciona, com a pretensão característica, que Alois comprou uma granja que ele próprio arava. O que Alois realmente comprou foi uma casa de três quartos, com um pequeno jardim, na aldeia de Leonding, a uns 2 quilômetros de Linz, onde morreu em 1903.
Adolfo Hitler tinha então 14 anos e freqüentava a escola secundária em Linz. Em Mein Kampf ele não é muito explícito sobre seus tempos de escola, o que não é de surpreender, pois jamais suportou revelar qualquer coisa a seu respeito que não contribuísse para um quadro compósito de gênio e nobreza. Na verdade, não se sobressaiu na escola; tinha um talento medíocre para o desenho e recebia uma classificação ocasional e relutante de bom em história e geografia. Mas August Kubizek, que foi seu contemporâneo e escreveu The Young Hitler, diz que ele era ocioso e instável, embora realmente amasse sua mãe. Lembro-me de muitas ocasiões em que ele mostrou esse amor da maneira mais profunda e comovedora durante sua doença fatal (ela morreu de câncer em 1908). Só se referia a ela com profundo afeto. Era um bom filho... sempre trazia consigo o retrato de sua mãe.
Adolfo também inclinou-se afetuosamente por uma jovem que Kubizek chama discretamente de Stefanie. Se quisermos acreditar em Kubizek, Hitler era pretendente desprezado de Stefanie. A posição social da família da moça era muito mais elevada que a dele, e ela era levada a passear diariamente de carruagem pelo passeio público de Linz por sua mãe. Hitler ficava com os amigos na calçada e procurava lançar-lhe olhares amorosos. Mas, de vez em quando, as duas damas eram vistas na companhia de jovens oficiais. Naturalmente, adolescentes pobres como Adolfo não tinham esperanças de competir com aqueles tenentes em seus elegantes uniformes... Este fato despertou nele uma terrível ojeriza pelos militares em geral. Hitler costumava chamá-los de cabeças duras convencidos e ficava para morrer com o fato de Stefanie misturar-se com esses vadios que usam espartilho e perfume, conforme dizia.
Kubizek revela que ele escreveu incontáveis poemas de amor para Stefanie e descreve um no qual uma donzela de alta estirpe, num esvoaçante vestido azul-escuro, cavalgava um corcel branco pelos prados floridos, com seus cabelos caindo em ondas douradas sobre os ombros. Ainda vejo o rosto de Adolfo afogueado de êxtase ardoroso e ouço sua voz recitando esses versos. Stefanie de tal forma ocupava seus pensamentos, que tudo o que ele dizia, fazia ou planejava para o futuro centralizava-se nela. Com o crescente alheamento de Hitler da sua casa, Stefanie ganhava influência cada vez maior sobre meu amigo, embora ele jamais lhe dirigisse uma única palavra.
Esse alheamento foi causado pela determinação de Alois de fazer com que seu filho ingressasse no serviço público, e pela igual determinação de Adolfo de tornar-se pintor – que, para ele, era um modo de dizer que não queria trabalhar. Seu reduzido talento para o desenho aumentara desme-suradamente na sua mente. Ele diz no seu livro Mein Kampf que, ao falar corajosamente a seu pai sobre o que queria fazer, Alois replicou: Artista! enquanto eu viver, nunca! Ao olhar as insulsas aquarelas de Hitler, não há como deixar der considerar justa a indignação de Alois, embora se tratasse mais de uma indignação social do que estética.
O alheamento se transformou em separação real, após a morte de Alois, mas isso só depois de alguns anos. Adolfo era ocioso demais para ser bem sucedido na vida escolar, e sua mãe procurava encorajá-lo, até que ela também morreu.
Ele tentara ingressar na Academia de Belas Artes de Viena, mas não conseguiu passar no exame de admissão. Prova de desenho insatisfatória, diz secamente a Lista de Classificação de 1907. Tentou no ano seguinte e foi novamente reprovado. Indignado, alegou ter havido injustiça e exigiu entrevista com o vice-reitor, que o dispensou sumariamente, dizendo-lhe apenas para tentar a Escola de Arquitetura, pois seus desenhos mostravam mais talento para aquele setor. Mas a Escola de Arquitetura recusou-o por não ter o Certificado de Conclusão de Curso Médio.
Assim, frustrou-se nele a esperança de tornar-se o que indubitavelmente julgava ser - o Miguel Ângelo austríaco. Nesta frus-tração tem origem o enorme ressentimento que desenvolveu contra o sistema da Academia: o primeiro dos muitos que viria a remoer.
Tendo perdido a mãe, cujos carinhos e indulgências foram como um bálsamo nos ferimentos que a frustração lhe abriu, ele mudou-se para Viena. Com seu desconsolo virado às avessas, via-se como um herói con-quistador.
As roupas numa valise e indômita resolução no coração, parti para Viena. Esperava frustrar o destino, como meu pai fizera cinqüenta anos antes. Estava decidido a tornar-me alguma coisa, mas certamente não um funcionário público.
Como sabemos, ele tornou-se de alguma forma um conquistador, que conquistou para a escravidão milhões de alemães. Mas, por enquanto, não passava de um biscateiro – mal vestido, mal alimentado e obrigado a viver como podia. Rheinhold Hanisch, outro biscateiro que o conheceu em Viena, diz que ele usava um velho casaco preto (presente de um judeu chamado Neumann) que lhe chegava abaixo dos joelhos, que seus cabelos caíam sobre o colarinho, saindo debaixo de um seboso chapéu-coco, e que seu rosto magro era coberto por uma barba preta. Anos de estudo e sofrimento em Viena é o título do capítulo pertinente em Mein Kampf, mas Hitler não diz que seu estudo se limitou a dar nova feição às idéias de outros homens, ou que seu sofrimento era causado pela própria ociosidade.
Neumann, o judeu, Hanisch, um homem chamado Siegfried Loffner e dois outros, que aparecem aqui sob os nomes fictícios de Stefan e Daniel porque ainda vivem, e por motivos que adiante revelaremos, têm direito ao segredo dos pseudônimos, confirmaram que Hitler vivia como eles. Carregavam bagagens, limpavam tapetes, chamavam carruagens, lavavam pratos e remexiam em latas de lixo. Neumann e Hanisch atuaram como seus agentes de arte por algum tempo, acompanhando-o às lojas e às vezes convencendo os proprietários a encomendar cartazes que Hitler fazia na hora; ou persuadindo os fabricantes de molduras a colocar suas açucaradas aquarelas nas vitrinas, onde ocasionalmente as vendiam a pessoas que gostavam dessas coisas. (Hitler pagou a bondade de Hanisch acionando-o legalmente pelo desvio de parte de uma soma recebida por um quadro, sendo ele condenado a uma semana de prisão ao se comprovar o caso.) Foram estes o estudo e sofrimento de Hitler em Viena. Ele detestava o trabalho regular, preferindo ganhar um dinheirinho e gastá-lo frugalmente em cafés, onde lia jornais e deitava o verbo com os clientes sobre política.
Ele era muito importuno, com suas reclamações contínuas de injustiças e ineficiências do sistema, com suas informações mal digeridas, extraídas da leitura indiscriminada e com suas idéias fantásticas para alcançar a fama. E, como acontece com a maioria dos maníaco-depres-sivos, era sempre ou taciturno ou exuberante, arrasando a paz de todo mundo com suas arengas contra os judeus, os Habsburgos, católicos ou sociais-democratas, ou fechando-se em si mesmo, recusando-se a falar com quem quer que fosse. Mesmo antes de sair de Linz, ele já se sabia um embusteiro: disse a Hanisch que muitas vezes falsificara velhos mestres, pintando quadros a óleo e levando-os ao forno para ficarem amarelados e com aparência de antigos. E, com sua habilidade em oratória barata, ele aprendeu a trapacear também com palavras. Condimentava banalidades piegas, de tal maneira, com amargura paranóica, que soavam como as trombetas de um salvador da raça alemã.
Ao todo, foram quatro os anos de estudos e sofrimentos em Viena. Em 1913 partiu para Munique, onde esperava sair-se melhor. Mas, entre-mentes, aconteceu algo de grande importância.
As hospedarias, os albergues, as criptas, os saguões, parques e igrejas onde Hitler ficava em Viena são incontáveis, e muitos deles iniden-tificáveis. Mas um deles, situado na Meldemannstrasse 27, é sem dúvida um dos lugares onde o pretenso salvador da raça alemã repousava a cabeça cansada. Ele ficava no XX Distrito (nordeste) da cidade, próximo do Danúbio, sendo eufemisticamente conhecido como Lar de Homens, embora não passasse de uma espelunca. Os pseudônimos Stefan e Daniel ali ficaram com ele, sendo pelo seu testemunho, feito anos mais tarde ao venereologista londrino, Dr. T. Anwyl-Davies, que se pôde estabelecer os fatos.
Stefan e Daniel lembram-se de uma discussão acirrada, numa noite de abril de 1910. Eles brigaram por causa de uma garota, uma prostituta judia chamada Hannah, briga essa provocada por Hitler, que desfrutara dela quando estava sendo paga pelos outros. Como Hitler já devia a Stefan e Daniel a hospitalidade permitida pelas suas circunstâncias, a indignação dos dois era plenamente justificada e eles não relutaram em a lançar-lhe ao rosto, fazendo-a acompanhar de uma boa surra. Eles o arrastaram para o dormitório, surraram-no e o puseram na rua. Hitler protestou, praguejou, e eles responderam, atirando-lhe suas tintas, canetas, pinturas e pincéis. Não o viram mais naquela noite.
Passada uma hora mais ou menos, os dois saíram, desta vez à procura de Hannah, tirando-a do seu ponto. Ela normalmente comerciava nos portais próximos da Estação de Noroeste – um comércio cansativo que às vezes envolvia quatro clientes por hora (a 50 heller cada um, cerca de três centavos de dólar pelos valores atuais), e sem dúvida achava o albergue, com suas camas piolhentas, relativamente confortável, e seus clientes, Stefan e Daniel, pouco exigentes. Eles se lembram de que ela muitas vezes ficava uma ou duas horas, tendo subornado o porteiro, a única pessoa interessada na regra da proibição de entrada de mulheres, com alguns cigarros, ao entrar, e depois voltava ao seu ponto, próximo da estação.
Nessa noite, eles observaram que o ligeiro exantema que haviam visto em seu corpo, na última vez que estiveram com ela, desaparecera. Dificilmente podia-se chamá-la de limpa, mas, pelo menos, ela não tinha mais o que lhes parecera ser dermatite calórica ou picadas de pulga no estágio de desaparecimento. Talvez pareça ingênuo que dois jovens, no final da adolescência e evidentemente promíscuos, imaginassem que sua consorte tivesse algo tão inocente como picadas de pulga; mas, embora tivessem ouvido falar de doenças venéreas, seu conhecimento era vago e por certo nada incluía sobre as manifestações clínicas desses males. Mesmo que soubessem, eles estavam vivendo – ou melhor, existindo – de um modo que os teria deixado indiferentes. Sem nada saber, eles se satisfizeram com Hannah, deram-lhe os cem heller que puderam reunir e mandaram-na embora.
Hitler voltou ao albergue uma ou duas semanas depois. Stefan e Daniel não se opuseram: já haviam aliviado sua indignação ao surrá-lo e não podiam incomodar-se em aumentar inimizades. Mas quando Hitler se despiu para matar os piolhos da roupa no forno do albergue, os dois observaram que, como eles, Adolfo também tinha no corpo um exantema róseo. Ainda não associavam isso a Hannah, tampouco sua sensação de mal-estar geral lhes parecia extraordinária, pois não viviam o tipo de vida que poderia propiciar uma saúde perfeita. Quando, mais tarde, o exantema se fez acompanhar de várias outras manifestações desagradáveis, eles recorreram sensatamente a um médico. Ao serem informados do diagnós-tico de sífilis, os dois sentiram-se maliciosamente confortados, ao lembrarem-se de que Hitler também apresentara o mesmo exantema. Já então ele, provavelmente, estava no mesmo estado desagradável. Acei-taram o tratamento que o médico lhes prescrevera, na época um ungüento composto principalmente de mercúrio, e ficaram imaginando se Hitler também tivera o bom senso de procurar ajuda médica.
Parece certo que não o fez – pelo menos naquele estágio inicial da infecção, quando o tratamento é vital. Felix Kersten, médico de Heinrich Himmler, o chefe das SS, apresenta a prova mais sólida de que Hitler era vítima da doença. A 12 de dezembro de 1942, escreveu ele em seu diário:
Este foi o dia mais emocionante que tive, desde que comecei a tratar de Himmler. Ele estava muito nervoso, muito inquieto. Compreendi que algo de extraordinário o atormentava e perguntei-lhe a respeito. Sua resposta foi outra pergunta: ‘Você pode tratar de um homem que sofre de sérias dores de cabeça, tonteiras e insônia?’
Claro que sim, mas devo examiná-lo antes que possa dar uma opinião definitiva, respondi. ‘Antes de tudo, preciso saber a causa desses sintomas’.
Himmler respondeu: ‘Vou dizer-lhe quem é. Mas você deve jurar que não falará disso a ninguém e tratará de quem lhe confio com o máximo segredo’.
Respondi que, como médico, segredos me eram constantemente confiados; não era uma experiência nova, já que a discrição era parte do meu dever profistaonal.
Himmler então tirou uma pasta do seu cofre e me apresentou um manuscrito azul, dizendo: ‘Leia isto. Aqui estão os documentos secretos com o relatório sobre a doença do Führer’.
O relatório tinha 26 páginas e logo compreendi que havia sido livremente extraído da ficha médica de Hitler, durante os dias em que esteve cego num hospital em Pasewalk. Esclarecia o relatório que na sua juventude, quando soldado, Hitler fora vítima de gás venenosso e fora tratado de maneira tão incompetente, que desde então corria o risco de ficar cego. Também havia, já naqueles primeiros relatórios, sintomas associados à sífilis. Em 1937 apareceram sintomas de que a doença evoluía e, no começo de 1942, sintomas de natureza idêntica mostravam, sem sombra de dúvida, que Hitler sofria de paralisia progressiva. Todos os sintomas estavam presentes, exceto o da fixidez da visão e a confusão na fala.
Devolvi o relatório a Himmler, informando-lhe de que infelizmente nada podia fazer, pois minha especialidade não se relacionava com doenças venéreas.
Ele me disse que Morell (o médico de Hitler) lhe estava aplicandp injeções e afirmava que deteriam o progresso do mal e, de qualquer modo, manteriam a capacidade do Führer de trabalhar.
Existem muitas outras provas conjeturais do estado sifilítico de Hitler. É significativo o fato de que o "Professor" Theodore Morell, o charlatão que se instalara habilmente como médico pessoal do Führer, entrara para o ménage deste para tratar de Heinrich Hoffman, o fotógrafo de Hitler, de uma infecção venérea. Também é significativo o fato de Helmut Spiethoff, um venereologista de renome, ter sido nomeado para o contin-gente de médicos de Hitler no começo da década de 1930 e que os registros das suas consultas foram confiscados pelo líder nazista Wilhelm Frick, quando Hitler se tornou Chanceler do Reich. E tanto Heinz Linge, seu criado de quarto, como Karl Brandt, cirurgião da sua equipe, descreveram sintomas típicos da sífilis em estado adiantado - desvarios maníacos, paralisia dos membros, hipocondria aguda, coceira contínua em várias partes do corpo e dores de cabeça e do estômago.
Mas é o testemunho que Stefan e Daniel prestaram a Anwyl-Davies, cuja reputação como venereologista não poderia ser maior, quem melhor prova que Hitler contraiu a doença em 1910. E o relatório secreto que Himmler mostrou a Kersten dificilmente pode ser negado, como prova da evolução da moléstia. O germe da sífilis, Spirochaeta pallida, pode atacar todos os órgãos do corpo, e os desvarios finais de Hitler são uma indicação quase certa de que o córtice do seu cérebro fora atacado, tornando inevitável a paralisia geral.
Naturalmente, a possibilidade do estado sifilítico de Hitler e do efeito deste sobre seu caráter já foi considerada antes, embora sem as provas corroborantes dos seus companheiros de infortúnio. Mas tem havido relutância - embora não haja razão compreensível para isso - em aceitar o fato. O estigma social que ainda subsiste com relação as doenças venéreas dificilmente poderia ter influenciado os inimigos de um homem como Hitler. Homens realmente mais importantes que ele foram infectados pela sífilis. Gauguin e Schumann, por exemplo, ou Beethoven, herdaram-na, e ninguém hesitou em reconhecer os efeitos da moléstia nas reações e na obra destes grandes mestres. Mas mesmo um biógrafo de renome como Alan Bullock (em seu ‘Hitler: a Study in Tyranny’) diz que tais alegações só tem lugar num estudo da carreira de Hitler se se puder mostrar que (elas) afetaram diretamente seus julgamentos e decisões políticos.
Seja qual for a origem dessa relutância, parece que já é tempo de superá-la. Já se mostrou, sem que haja lugar para muita dúvida, que ele estava contaminado. Parece igualmente certo que não foi tratado a tempo de deter a evolução da doença. A descoberta de Paul Ehrlich, o Salvarsan 606, que permaneceu como o tratamento padrão para a sifilis até o advento da penicilina, em 1943, foi anunciada ao mundo médico no Congresso de Medicina de Wiesbaden, a 19 de abril de 1910. Mas esse remédio só passou a ser produzido em massa a partir de 1912, sendo muito pouco provável que Hitler, mesmo que tivesse procurado tratamento nos primeiros estágios da infecção, pudesse pagar os honorários do espe-cialista para um tratamento com a nova droga milagrosa. Não há dúvida de que ele recebeu toda sorte de tratamento após subir ao poder – a exis-tência, na corte de Hitler, de venereologista tão eminente como Spiethoff não deixa dúvida. Mas já então o Spirochaeta pallida minara de modo irreversível o seu organismo, e nada poderia eliminar o dano que ele causara, pois as células dos órgãos assim atacados dificilmente se regeneram.
Assim, tendo apresentado mais evidências do que alegações, é sensato considerar-se essas provas quando se traça a carreira política e militar de Hitler – da subida ao poder ao fim ignominioso no bunker sob a Chancelaria, a 30 de abril de 1945, quando a vida do Terceiro Reich terminou, de maneira tão inglória quanto a do seu fundador, depois de doze anos e quatro meses de infame existência, em lugar dos mil anos que ele prometera.
O homem
Quem quiser viver é constrangido a matar. Martelo ou bigorna. Mi-nha intenção é preparar o povo alemão para ser o martelo. – Hitler
Hitler deixou Viena na primavera de 1913. Já então sofria de perturbações gástricas, que sem dúvida eram as primeiras manifestações da sífilis intratada, e também concentrara dentro de si grau, de quantidade do sentimento antijudaico que predominava na cidade.
Seria fazer uma exceção, atribuir o anti-semitismo de Hitler ao rancor que ele nutria por Hannah, a prostituta judia que o infeccionara. Isso dependeria de duas premissas: a de que ela fora o seu único contato sexual, o que parece improvável, e a de que ele já então sabia que contraíra a doença, o que não se pode confirmar.
Naquela época, Viena estava carregada de prevenção contra os judeus. Livros e panfletos anti-semitas jorravam das impressoras – alguns deles pornográficos, a maioria insanamente falsa em suas acusações, e todos eles estúpidos e insultuosos. A princípio sua veemência o espantou: No judeu eu ainda via apenas um homem que tinha uma religião diferente e, portanto, por motivos de tolerância humana, era contra a idéia de que ele deveria ser atacado por ter uma fé diferente... Eu achava que o tom adotado pela imprensa antisemita em Viena era indigno das tradições culturais de um grande povo.
Mas ele não demorou muito a superar seu espanto. Aos meus olhos, os ataques ao judaísmo se tornaram graves quando descobri as atividades judaicas na imprensa, nas artes, na literatura e no teatro. Ele também descobriu que nove décimos de toda a literatura pornográfica, das sandices artísticas e das banalidades teatrais tinham de ser debitados na conta dos judeus e que não havia nenhuma forma de obscenidade, especialmente na vida cultural, em que pelo menos um judeu dela não parlicipasse.
Todas essas extraordinárias descobertas sobre as quais ele arenga no fraseado cediço do Mein Kampf, foram coroadas pela compreensão de que os judeus eram os líderes da social-democracia. Diante dessa revelação, caíram as escamas que me cobriam os olhos. Minha longa luta interior chegara ao fim. Podemos ouvir as escamas caindo ao chão, e os gases conflitantes do seu estômago silenciando. Ele finalmente encontrara no que concentrar sua malignidade. E não apenas isso. Ao ter sua mente conduzida para a ciência política através do racismo, ele encontrou um assunto que servia à sua mentalidade e ao seu caráter. As idéias pan-germânicas, que infestavam o currículo da sua escola em Linz, agora lhe inundavam a mente com um efeito de remoinho. Daquele vórtice surgiu a visão de si próprio como o salvador messiânico da raça ariana – especialmente da parte alemã. Ele expressou essa convicção mil vezes, e um dos exemplos mais repugnantes dessa expressão está num discarso pré-eleitoral pronunciado em Viena a 9 de abril de 1938:
Acredito que era vontade de Deus mandar um menino daqui para o Reich, deixá-lo crescer e educar-se para ser o líder da nação e levar sua pátria de volta ao Reich... a mim foi dada a graça... de poder unir minha pátria ao Reich... possa todo alemão reconhecer a hora e a medida da sua importância e curvar-se humildemente perante o Todo-Poderoso que... realizou esse milagre pra nós!
Este era o Hitler plenamente desenvolvido na sua megalomania. Mas não foi preciso nenhum milagre do Todo-Poderoso para trazer o embrião salvador de 1912 até o Führer megalômano de 1938. Para um homem da sua instabilidade, que acalentava ressentimentos contra um mundo que não conseguira reconhecer nele qualquer genialidade e cujo corpo servia de repasto aos destruidores micróbios da sífilis, todas as circunstâncias em que tal salvador poderia florescer tinham sido criadas pelos signatários do Tratado de Versalhes.
Hitler evitara a convocação para o exército austríaco em 1913, alegando que se recusava a servir com os sujos judeus tchecos e com a escória da monarquia dos Habsburgos. Ele deixou Viena para fugir ao serviço militar, mas a polícia perseguiu-o tenazmente com suas inves-tigações e, em janeiro de 1914, alcançou-o em Munique, onde foi intimado a apresentar-se para o exame médico. Fui recusado, diz ele, devido à má saúde e debilidade geral. E prossegue explicando que sua debi-lidade geral era causada pela má nutrição resultante dos parcos rendimentos como artista. Mas em 1938 ele ordenou à Gestapo que des-cobrisse e destruísse todos os registros do exame. Seja qual for a razão de o exército austro-húngaro recusá-lo em 1913, ele foi aceito como volun-tário no 16º Regimento de Infantaria da Baviera a 7 de agosto de 1914, no início da guerra. Serviu como mensageiro no mesmo regimento durante toda a guerra, foi condecorado com a Cruz de Ferro (Primeira e Segunda Classes, por nenhuma razão oficialmente registrada[1], e promovido a cabo.
Durante um ataque inglês à aldeia francesa de Comines, a 13 de outubro de 1918, Hitler ficou cego. Essa era a cegueira mencionada no relatório secreto a que Kersten se referiu. Os ingleses estavam usando gás e na época se pensava que este fosse a causa. Ele foi mandado para o hospital militar em Pasewalk, onde um oftalmologista, o Dr. Viktor Krückmann, o examinou e comunicou que Hitler estava sofrendo de cegueira histérica, e não de qualquer dano causado por gás. Trata-se de uma perturbação nervosa muitas vezes indicativa do estágio terciário da sífilis, escreveu ele. Sugiro que esse homem seja examinado para verificar evidências dessa doença e ser tratado nessa conformidade. Ele recuperará a visão."
O que realmente aconteceu. Mas não há registros do exame subseqüente, feito pela Clínica de Doenças Venéreas para onde o enviaram. Talvez também tenham sido destruídos pela Gestapo. O compilador do documento secreto que Kersten examinou pode tê-los visto, pois Kersten diz que ele se refere a sintomas associados com a sífilis. Mas em 1965, Krückmann era de opinião de que eles haviam sido deliberadamente destruídos por Frick, tal como aconteceu com os registros das consultas de Spiethoff.
Em todo caso, Hitler ainda estava no hospital de Pasewalk quando se proclamou o armistício, sendo a paz buscada pelo General Ludendorff, do Alto Comando Alemão, e pelo Chanceler, Príncipe Max von Baden.
Em novembro, escreveu Hitler, a tensão geral aumentou. Então, certo, dia, o desastre abateu-se sobre nós sem aviso. Chegaram marinheiros em caminhões e nos incitaram à revolta. Alguns rapazes judeus eram os líderes... Nenhum deles vira serviço ativo na frente de batalha. Através de um hospital para doenças venéreas, esses três "orientais" haviam sido mandados de volta para casa. Agora, suas bandeiras vermelhas estavam sendo hasteadas aqui.
Não há qualquer prova, exceto o desprezo permeado de ódio de Hitler, de que houvesse judeus entre os citados não-combatentes e "orientais", ou que tivessem estado num hospital para doenças venéreas. (Ele os teria visto lá?) Os marinheiros revolucionários eram apenas uma minoria dos amotinados de Kiel que se haviam recusado a fazer-se ao mar com seus navios para prosseguir numa guerra que já terminara. Mas este é apenas um exemplo dos preconceitos maníacos de Hitler.
Num grande bloco de palavras mal escolhidas, ele prossegue dizendo que recuperara a visão e mal podia acreditar que a Alemanha capitulara. Voltei vacilante e cambaleando para minha enfermaria e enfiei minha dolorida cabeça entre as cobertas e o travesseiro... Então fora tudo em vão. Em vão todos os sacrifícios e privações; em vão a fome e a sede por meses intermináveis; em vão as horas que ficamos firmes em nossos postos, embora o medo da morte nos prendesse a alma... , e assim por diante, numa prolongada saga de autocomiseração disfarçada em vinga-tivo "mea culpa". Exceto essa informação incidental sobre o caráter do seu autor, esse capítulo do Mein Kampf tem uma única frase importante: De minha parte, decidi então ocupar-me do trabalho político[2].
A capitulação que tanto chocara Hitler – de resto toda a nação alemã, que pensava já avistar a vitória – foi instigada já a 5 de outubro de 1918, por Ludendorff. Naquela data despachou-se uma nota ao Presidente Woodrow Wilson dos Estados Unidos, solicitando formalmente as negociações de paz. Wilson respondeu perguntando se o governo alemão tencionava discutir a paz nos termos dos seus discursos perante o Com-gresso e nos quais estavam formulados os famosos Quatorze Pontos, Quatro princípios e Cinco Específicos. A resposta foi Sim. Desse modo, Alemanha e Estados Unidos concordaram inicialmente em que as nego-ciações de paz deveriam basear-se num total de 23 condições estipuladas por Wilson e que também teriam de ser aceitas pelos demais Aliados. Era uma base instável para se discutir um Tratado de Paz – sobretudo porque os Aliados não tinham sequer a mais leve indicação de que os Estados Unidos tinham uma base de negociação com o inimigo. E tampouco estavam inclinados a aceitá-las, ao saberem das condições. Cada um dos Quatorze Pontos foi virado e revirado por Clemenceau, da França, Lloyd George, da Grã-Bretanha e Sonnino, da Itália, cada um tendo razões – nem todas admiráveis – para emendar os Quatorze Pontos e obter vanta-gens específicas para seus países. Mas os Estados Unidos permaneceram irredutíveis. Os Quatorze Pontos deviam ser aceitos in totum ou eles concluiriam um tratado de paz em separado com a Alemanha.
Isto foi uma bomba, diz Richard M. Watt em The Kings Depart. Lloyd George e Clemenceau não podiam permitir que os colocassem numa posição de causar um armistício vitorioso e obrigassem seus países a prosseguir numa guerra agora insensata – especialmente quando a opinião mundial interpretaria suas razões para isso como uma recusa cínica de altos princípios, tais como a liberdade dos mares e a abolição da diplomacia secreta. Eles foram colocados numa posição de onde não podiam fugir.
Agora era a vez de os Aliados capitularem. Eles aceitaram os princípios wilsonianos, e o armistício foi celebrado a 11 de novembro. Foi a porta que se abriu para a conferência de paz de Versalhes.
Volumes foram escritos sobre aquela desastrosa conferência e sobre o Tratado nela assinado depois de cinco meses de discussões. Em resumo, é necessário dizer apenas que das condições estipuladas por Wilson e aceitas pelos alemães, apenas quatro foram finalmente incorporadas ao Tratado. O inimigo derrotado assinara um armistício cujos termos, quando da assinatura do Tratado, haviam sido distorcidos a ponto de se torna-rem irreconhecíveis. Durante os cinco meses de discussões, revelaram-se atitudes de rancor, cobiça e desejo ardente de vingança que, embora com-preensíveis de certa maneira, só poderiam levar a contendas no futuro – por mais que se pudesse adiar o choque.
Lord Keynes escreveu sobre os plenipotenciários das 32 nações reunidas em conferência: O futuro da Europa não lhes interessava; seus meios de subsistência não os sensibilizavam. Suas preoaspações, boas e más, relacionavam-se com fronteiras e nacionalidades, com o equilíbrio de poder, com engrandecimentos imperiais, com o futuro enfraquecimento de um inimigo forte e perigoso, com vingança e com a transferência dos seus insuportáveis ônus financeiros para os ombros do vencido!
E como outra denúncia ao Tratado, o Primeiro Ministro da Itália, Nitti, escreveu mais tarde: Permanecerá para sempre como um terrível prece-dente na história moderna o fato de que, contra todas as promessas, todos os precedentes e tradições, os representantes da Alemanha nunca foram ouvidos; a eles nada restou senão assinar um tratado num momento em que a fome, a exaustão e a ameaça de revolução tornavam impossível não assiná-lo... Na velha lei da Igreja estipulou-se que todos devem ter o direito de ser ouvidos, até mesmo o demônio. Mas a nova democracia, que se propunha criar a Liga das Nações, nem sequer obedeceu os preceitos que o obscurantismo da Idade Média considerava sagrados em nome do acusado.
Foi no cenário criado pelos escombros de acordos violados, por estadistas tirânicos, pela força à boca da pistola e pela perigosa humilhação de uma nação vencida, que Hitler, o homem do destino, apareceu para ocupar-se de trabalho político.
A maior qualidade de Hitler – e, no seu campo, equivalia a gênio – foi sua percepção psicológica. Vendo-se como um homem rejeitado pela sociedade, e ignorando cegamente o fato de que essa rejeição era causada por sua natureza nada cativante, ele pôde facilmente identificar-se com as massas de uma nação que, apenas procurando uma paz honrosa, fora pisoteada e reduzida a pó pelo Tratado de Versalhes. A humilhação é a mais perigosa das punições a se impor a uma nação cujo caráter não é abjeto; e um homem que pode manipular as emoções de um povo obrigado a prostrar-se não pode deixar de ser ouvido. Sobretudo nas circuns-tâncias que afligiam a Alemanha do pós-guerra.
Mas, de modo algum, ouviram-no imediatamente. Mesmo um gênio nato tem de ser guiado por um caminho proveitoso. No tocante a Hitler, o caminho era através das tavernas de Munique, onde, em 1919, ele fortuitamente se encontrou no meio de homens que mais tarde se torna-riam famosos como seus mestres e associados – Dietrich Eckart, Ernst Röhm, Alfred Rosenberg, Rudolf Hess, Anton Drexier, Karl Harer e Gottfried Feder. Aqueles homens – um poeta, um soldado, um arquiteto, um político disfarçado em consultor militar, um serralheiro, um jornalista e um economista meio doido – estavam todos afundando numa viscosa confusão de noções revolucionárias ilegítimas para salvar a Alemanha do desastroso estado de coisas criado pela guerra e pelo Tratado de Paz.
Era Eckart quem se preocupava interminavelmente com a formação de um Partido do Cidadão Alemão para neutralizar a influência dos bolchevistas e judeus, e que descrevia o caráter do homem que deveria liderá-lo:
Devemos ter um sujeito na cúpula que não trema com o matraquear de uma metralhadora. A turba deve receber um susto daqueles. Um oficial não serve, as pessoas não os respeitam mais. O melhor seria um trabalhador metido numa roupa de soldado e que seja linguarudo. Ele não precisa ser muito inteligente; a política é o negócio mais imbecil do mundo, e qualquer feirante de Munique sabe tanto de política quanto aqueles que estão em Weimar (a capital). Preferiria ter um moleque estúpido e presunçoso, que possa dar uma resposta vigorosa aos vermelhos e que não corra toda vez que o ameacem com uma perna de cadeira, do que uma dúzia de doutos professores que se sentam trêmulos nos fundilhos molhados dos fatos. E ele também deve ser solteiro. Então conquistaremos as mulheres!
Mas foi Anton Drexler quem realmenre fundou o partido que Hitler viria a liderar, o Partido dos Trabalhadores Alemães, um grupo amorfo e estático de quarenta membros e um capital de 7,50 marcos. Foi ao comparecer a uma das suas débeis reuniões políticas, a 12 de setembro de 1919, que Hitler falou com tal veemência que Drexler o persuadiu a filiar-se ao Comitê dos Seis.
Ele fora enviado à reunião como pequeno espião a serviço do comando do exército de Munique, que estava sondando à procura de atividades políticas subversivas. Mas o que ele realmente descobriu foi a oportunidade da sua vida. Ali estava uma organização sem rumo, mal dirigida e cheia de joões-ninguém, e embora ele próprio fosse um joão-ninguém, tinha idéias muito melhores do que as que estavam em debate, e logo viu a possibilidade de impô-las a um grupo que carecia de liderança, energia e membros.[3]
Assumiu o comando quase que de imediato; implicitamente, senão por título; e três meses depois foi nomeado Oficial de Propaganda. Ele efe-tuou a fusão de vários outros movimentos minoritários – cujas metas eram, vagamente, a execução prática de uma política de anti-semitismo e anticomunismo e o não-cumprimento das condições opressivas do Tratado de Versalhes. E ampliou o título para o grandioso Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães), de cuja primeira palavra se cunhou a abreviatura Nazi. O destino do Partido Nazista e, subseqüentemente, do Terceiro Reich, durante os 25 anos seguintes, é o destino de Adolfo Hitler.
O demagogo
O fundamento da autoridade reside na popularidade" – Hitler
Assim como Hitler, o Partido estava doente. Era a doença da vanglória. Os interessados no estudo das teorias do racismo podem examinar os sintomas apresentados por grandes enfadonhos, como Thomas Wolfe, Houston Stewart Chamberlain, o Conde de Gobineau e Richard Wagner, o sogro de Chamberlain. Todos eles, reconduziam aos mitos dos heróicos Siegfrieds arianos, aos horríveis e racionalmente inferiores Alberichs e a Valhalas próprios para moradas dos deuses alemães triunfantes. Gente insatisfeita com a realidade cria lendas e as desgraçadas realidades do Tratado de Versalhes e da República de Weimar obrigavam a toda a sorte de queixas doentias, precisando apenas do conforto de um charlatão revelador para aliviar o mal-estar. O "filósofo" Houston Stewart Chamberlain, depois de ter suas botas untuosamente polidas com a admiração velhaca de Hitler, declarou:
O fato de que na hora da sua maior necessidade a Alemanha deu à luz um Hitler prova a sua vitalidade.
O que na verdade provou foi a incapacidade de o Partido apresentar qualquer alternativa para a situação a que a Alemanha fora reduzida pelo espírito vingativo do Tratado de Versalhes, que não o Valhala falsamente fascinante agora revelado em prestigiosos vislumbres pelos métodos de marketing do seu salvador tipo "flautista de Hamelin". [4]
Da mesma forma que Hitler assumira o comando dos joões-ninguém do Partido Operário Alemão em 1919, em 1923 ele já tinha atrás de si uns 55.000 alemães desorganizados – na maioria do Sul – que, por serem caracteristicamente maleáveis, foram facilmente moldados no agressivo padrão nazista. Sua primeira tentativa de agressão franca foi cercar-se de um grupo de valentões e invadir um salão em Munique, onde um grupo rival realizava uma reunião política. Hitler disparou tiros de pistola para o teto, berrou que o governo bávaro estava deposto e que ele era o líder do novo Reich. Compreensivelmente, esse golpe dramático falhou (mas por pouco) e, para salvar as aparências, ele preparou uma marcha de demonstração no dia seguinte, 9 de novembro de 1923. Aquela marcha, que ele liderou lado a lado com Ludendorff, encontrou resistência policial, havendo troca de tiros de ambos os lados. Hitler fugiu, deixando os corpos de 16 nazistas na Odeonplatz. Mais tarde os mortos seriam transformados nos grandes mártires da causa nazista, e Hitler justificaria seu desaparecimento covarde da refrega, explicando que arrancara uma criança indefesa da linha de fogo. Não havia criança alguma, e, se houvesse, Hitler não poderia tê-la carregado, porque, antes de fugir, ele caíra feio, deslocara o ombro direito e quebrara o braço esquerdo.[5]
O resultado direto do putsch de 9 de novembro foi a prisão, julgamento e condenação de Hitler a cinco anos de prisão, sendo confinado com todo o conforto na fortaleza de Landsberg. Concederam-lhe alimentação especial, permitiram-lhe receber visitas, ter um quarto confortável, flores, um secretário particular e exercício ilimitado no local. Ele foi libertado depois de oito meses, pois seu discurso de defesa perante o Tribunal do Povo de Munique fora tão cheio de patriotadas pomposas e vazias que só deram o veredito de culpado depois que o presidente garantiu que o acusado em breve seria perdoado.
Durante a prisão ele escreveu o tedioso Mein Kampf.[6] O Partido fora proscrito, mas sua renovação sub-reptícia fora motivo de muita briga entre os principais adeptos de Hitler - Strasse, Streicher, Röhm, Rosenberg, Ludendorff, Feder e Frick - que lutaram pelo cadáver político como hienas. Hitler dissociou-se altaneiramente dos seus desacordos sobre metas e liderança e dedicou-se à vida literária, ditando grande parte do Mein Kampf a Rudolf Hess, que funcionava como seu secretário.[7] Ele não queria que o Partido revivesse sob a liderança de outra pessoa. Esperou até ser libertado condicionalmente e então convenceu o Ministro da Justiça bávaro a permitir a remodelação do Partido e o reaparecimento do seu jornal, o Volkischer Beobachter ("Observador Popular"). Sua persuasão se baseava no reconhecimento, por parte de Hitler, de todos os seus erros passados e numa declaração de que os nazistas tinham apenas o objetivo de combater o marxismo e o judaísmo. Houve uma viscosa reconciliação entre ele e alguns dos rixentos líderes e o Partido reapareceu como uma força.
Mas durante muito tempo ele foi uma força extremamente ineficaz. Embora tivesse cedido aos apelos de Hitler, o Ministro da Justiça não foi tão estúpido a ponto de lhe permitir fazer discursos. Isso foi muito sensato, pois era apenas a personalidade mesmeriana projetada através dos discursos histéricos que fazia seguidores para o Partido. Mas essa sensatez não pôde ser mantida. A proibição dos discursos de Hitler foi anulada em maio de 1927 e o culto semi-religioso do salvador difundiu-se entre os milhares que o ouviam com uma histeria só comparável à dele – uma histeria que, como dizia o próprio Hitler, não era involuntária e sim "uma tática baseada no cálculo preciso de todas as fraquezas humanas, cujos resultados devem levar, quase que matematicamente, ao sucesso".
O que realmente aconteceu. Ele era um estuprador usando palavra como um falo. Eckart por acaso acertara, ao traçar o perfil do líder: Ele deve ser solteiro. Então conquistaremos as mulheres! Na realidade, para ele as massas eram mulheres. Piadas grosseiras eram feitas sobre sua afirmação de que, depois de um grande discurso, ele ficava enxarcado; mas é verdade que ele experimentava um delírio orgiático – um substituto, como diz Joachim Fest, para a experiência emocional que lhe permanecera proibida em toda a sua monstruosa egofixação. E possivelmente, a se aceitar que ele era um estuprador, também era um ato de vingança contra a sifilítica Hannah. No Mein Kampf, ele escrevera febrilmente sobre a sífilis e sobre a genética judaica e também isso pode ter sido uma vingança inconsciente – ou mesmo deliberada – mais contra uma pessoa do que contra uma raça.
Quanto às relações sexuais mais normais, tem havido muita espe-culação sobre as explorações de Hitler, nesse campo, mas são muito poucos os fatos em apoio das mesmas. Na sua juventude houve a inatin-gível Stefanie e a facílima Hannah; na meia-idade houve sua amante, Eva Braun, com quem se casou como prelúdio ao pacto de suicídio que pôs fim às suas vidas. E no período de ascensão do Partido, em fins da década de 1920, ele viveu com sua sobrinha Geli Raubal, filha da sua meia-irmã. Em 1931, Geli matou-se, com um tiro, no apartamento de Hitler, que pareceu inconsolável durante algum tempo; mas isso nada prova, exceto uma fixação emocional numa jovem vinte anos mais moça que ele e a quem submeteu tiranicamente a um estado de sujeição neurótica.[8] Devido ao efeito deteriorante sobre sua mente e seu corpo, o breve encontro com Hannah é de enorme importância, mas todas as outras informações incidentais sobre as atividades sexuais de Hitler podem passar para o campo da conjetura.
Em contraposição, o que se afirma sobre a influência mesmeriana e, o crescimento do Partido sob a liderança de Hitler é apoiado por fatos. Havia pequenas discordâncias dentro da organização – sobretudo centra-lizada nos reles Camisas-Pardas das SA, recrutados entre os ex-soldados que formavam o pequenino exército permitido pelo Tratado de Versalhes e que demonstravam mais entusiasmo militar do que político, o que, na época, em nada servia às intenções de Hitler[9]. (Ele lhes permitiu que se engasgassem em seus próprios brados de guerra e, por volta de 1929, criara seu próprio corpo de elite, sob a sinistra liderança de Heinrich Himmler. As SS – Schutzstaffeln (Quadros de Defesa), guarda pessoal de uniforme negro – tinham bastante entusiasmo político e jurou obediência absoluta. Foi através delas que Hitler dominou o Partido, a nação e as forças armadas.) Apesar, porém, dessas desavenças internas, o Partido ampliou seu domínio sobre o país. Tendo caído para 17.000 membros em 1926, a restauração do direito de palavra de Hitler, em 1927, rapidamente elevou para 60.000 o número de membros, Por certo, pode-se inferir que em 1928 o número de seguidores, senão de membros reais, do Partida havia dobrado.
Mas foi com a crise financeira norte-americana de 1929, e a subseqüente depressão econômica no Ocidente, que Hitler e o Partido Nazista alcançaram a vitória. Sob a República Constitucional (chamada de Weimar, pela nova capital da Alemanha), que Hitler chamava variadamente de república da traição, os criminosos de novembro e os traidores infestados de judeus, jorrara dinheiro norte-americano para a Alemanha. O marco fora estabilizado, as forças aliadas se haviam retirado da Renânia e a produção industrial aumentara a ponto de reduzir o desemprego a pouco mais de meio milhão. Contra essa prosperidade os nazistas tinham poucas esperanças de sucesso com suas profecias sinistras do próximo desastre financeiro. Eles conquistaram menos de 1 milhão de votos nas eleições de 1928 e tinham apenas 12 membros no Reichstag, o Parlamento Nacional. Mas com o colapso financeiro de Wall Street, em 1929, veio o desastre. A impossibilidade de a Alemanha reembolsar as iníquas reparações exigidas pelo Tratado de Versalhes e os juros sobre os empréstimos a curto prazo que os Estados Unidos, tontos com seu próprio poder, haviam concedido com tanta facilidade, levaram a um endivi-damento econômico imediato. A Alemanha se parecia com o homem que vivia operando sua conta bancária a descoberto e que de repente se vê privado de crédito. Por volta de 1932, havia 5 milhões de desempregados. O mal da desesperança espalhou-se por todo o país. Alimento, agasalho e abrigo fugiam do alcance do povo com terrível freqüência e mesmo que o arrimo de família estivesse trabalhando, era pouco provável que fosse em tempo integral. As poupanças sumiram numa onda de exploração e num esforço desesperado para pagar hipotecas de fazendas e casas. E, como diz Alan Bullock em Hitler: a Study in Tyranny:
Como se o país houvesse sido varrido por um terremoto, milhões de alemães viram a estrutura aparentemente sólida da sua existência fender-se e ruir. Em tais circunstintàas, o homem deixa de ser suscetível aos argumentos da razão. Em tais circunstâncias, todos se deixam tomar de medos fantásticos, ódios extravagantes e esperanças igualmente extra-vagantes Em tais circunstâncias, a extravagante demagogia de Hitler começou a atrair seguidores em massa, em quantidades sem precedentes.
Aquela massa de seguidores, juntamente com a incapacidade dos seus oponentes de competir com seus métodos de propaganda, e fortalecida pelas suas próprias intrigas astutas para subverter – pela ameaça, suborno, assassinato ou outro método que servisse ao propósito – os esforços dos membros do Partido que estavam brigando pelo poder levaram Hitler ao cargo de Chanceler do Reich alemão em janeiro de 1933. Com a morte do Presidente von Hindenburg dezenove meses depois, ele anunciou – com a coagida concordância dos que, de certa maneira, haviam tentado impedir sua subida ao poder – que os cargos de Presidente e Chanceler estavam agora reunidos e que ele próprio era o supremo governante do Estado e Comandante-Chefe de todas as forças armadas[10] (10).
Sua primeira ordem ao exército foi para que fizesse um voto de fidelidade e obediência a ele pessoalmente – não à Constituição ou ao país:
Por Deus eu faço esse juramento sagrado: prestarei obediência incondicional ao Führer do Reich e do Povo Alemão, Adolf Hitler, o Comandante-Supremo das Forças Armadas, e estarei pronto, como um bravo soldado, a dar minha vida, a qualquer momento, pelo meu Führer.
Assim, em agosto de 1934, Adolf Hitler passou a dispor de poder absoluto. Os efeitos corruptores desse poder em breve se tornariam visíveis.
A crueldade pessoal de Hitler para com rivais ou dissidentes fora demonstrada de maneira chocante num expurgo realizado cinco semanas antes. A 30 de junho, ele ordenou a execução de Ernst Röhm e outros líderes dos Camisas-Pardas que haviam tentado uma revolta. Houve massacres por toda a Alemanha; o ex-Chanceler, General von Schleicher, e importantes oficiais do exército, funcionários públicos e católicos romanos foram assassinados. Os assassinos eram os homens de negro das SS que, com a Gestapo que tinham absorvido, daí em diante viriam a ser os principais executores das maquinações de Hitler.
Política e socialmente, havia formas menos sanguinárias mas igualmente eficazes de crueldade. Todo o sistema parlamentar da república de Weimar foi dissolvido. Todos os partidos políticos, exceto o nazista, foram proibidos; a criação de qualquer tipo de organização política não-nazista era passível de prisão em campos de concentração; a liberdade de expressão cultural nas artes e na literatura deixou de existir; os direitos civis e a igualdade de cidadania foram suprimidos e se introduziu o sistema de líder ou Füherprinzip – um Führer todo-poderoso na cúpula e incontáveis Führers menores pisoteando a cabeça dos seus inferiores hierárquicos, até o cidadão comum, o qual devia obedecer até encontrar alguém inferior para liderar. A Igreja e a imprensa foram revolucionadas. Somente a versão nazista da história era contada, só se tolerava a religião da propaganda antijudaica, a imprensa era o porta-voz do nazismo e nenhuma outra voz podia ser ouvida.
Durante quatro anos, Hitler organizou o estado nazista numa máquina diplomática e militar que violava a maioria das cláusulas do Tratado de Versalhes. Ele criou a Luftwaffe,[11] introduziu o alistamento militar compulsório, ocupou com suas tropas a Renânia desmilitarizada pelo Tratado de Versalhes;[12] retirou-se da conferência mundial do desarmamento, abandonou a filiação da Alemanha à Liga das Nações, celebrou uma prestigiosa concordata com o Vaticano e um pacto de não-agressão com a Polônia – ambos destinados a dar tempo para que seus desígnios amadurecessem e não para dar quaisquer vantagens políticas para a Itália, ou a Polônia.
Aqueles quatro anos, de 1933 a 1937, testemunharam a recuperação econômica da nação alemã e o aumento das suas forças armadas. A Ale-manha passou a contar com tal poder de agredir, que espantava e frus-trava os países-membros da Liga das Nações (da qual Japão e Itália, bem como a Alemanha, se haviam retirado). A percepção psicológica de Hitler revelou-se brilhante. Com uma série de audazes golpes diplomáticos ele lograra os estadistas que jogavam o jogo diplomático segundo as regras convencionais. Quando estes se libertaram das peias do cavalheirismo e perceberam estar lidando com um psicopata brilhante, os fios dos planos do Führer para a dominação alemã já enredavam inextricavelmente as vítimas incautas. Na primavera de 1938, Hitler já estava bastante forte para empreender a invasão da Áustria e anexá-la ao Reich alemão. Daí em diante a sua terra natal não teria mais nome.[13]
Mas sua cobiça maníaca por lebensraum (espaço vital) e poder não foi, de modo algum, facilmente saciada. Tendo a Grã-Bretanha e a França traído pusilanimemente a Tcheco-Eslováquia, fazendo-a retirar suas forças defensivas da região dos Sudetos,[14] para lhes dar tempo para se prepararem para uma guerra de cuja inevitabilidade estavam certos, Hitler ocupou aquele território no outono de 1938 sem dificuldade alguma. Seis meses depois ele estendeu suas garras para a Boêmia, Morávia e Memel[15]. O Estado Livre de Danzig foi proclamado parte do Reich alemão a 1º de setembro de 1939, e a Polônia foi invadida no amanhecer daquele mesmo dia, obrigando a Grã-Bretanha e a França a declararem guerra, para cumprir as obrigações contraídas no tratado com a Polônia.
Uma semana antes do fantasma da guerra dominar a Europa, Hitler dera seu golpe culminante de diplomacia: um pacto de não-agressão e comércio com a Rússia, garantindo a paz entre os dois países por um mínimo de dez anos. Como ele vinha pregando contra a iniqüidade do comunismo desde 1919, o pacto foi um golpe de mestre.[16] O custo teórico era considerável: nada menos do que a divisão da malfadada Polônia em duas partes iguais – a oriental seria o preço da Rússia. Mas a inutilidade do Pacto pode ser medida pela revelação que Hitler fez da sua meta eventual, numa conferência com seus chefes militares, a 20 de agosto: Meu pacto, senhores, destina-se apenas a ganhar tempo. Esmagaremos a União Soviética. O tempo era realmente a essência dos seus planos. Para a Alemanha, mesmo no seu atual estado de imenso poderio militar, a luta nas frentes ocidental e oriental simultaneamente seria tão fatal em 1939 como demonstrara ser na Primeira Guerra Mundial. O Ocidente devia ser esmagado primeiro. E tão logo recebeu a declaração de guerra dos Aliados a 3 de setembro de 1939, Hitler dedicou-se inteiramente à sua gigantesca tarefa.
O estrategista
Os limites dos países são criados pelos homens, e por eles modificados – Hitler
Com seu ataque à Polônia, Hitler não só desencadeara a guerra como podia afirmar que não existia um estado de guerra até que os Aliados a declararam. Reduzida à posição de uma briga de crianças, ela não passava de um não fui eu quem começou, foi ele. Segundo os padrões hitleristas, a invasão da Polônia foi apenas uma expansão lógica e justificável do seu direito ao Estado Livre de Danzig e, anteriormente, à Austria, aos Sudetos, Boêmia, Morávia e Memel. Ele afirmara que estes eram partes do Reich alemão que haviam sido arrancadas na gananciosa divisão depois da Primeira Guerra Mundial. Ele também fazia observar o fato de que não se derramara uma só gota de sangue na libertação do seu povo do jugo opressivo de Versalhes. Se os poloneses tivessem demonstrado idêntica e sensata boa vontade de serem abrangidos pelo Reich, não teria sido necessária a coação.
Naturalmente, a especiosidade de tal argumento seria evidente a qualquer tribunal imparcial que investigasse as causas imediatas da guerra. Mas não houve tal tribunal nem tal argumento.
A Polônia foi virtualmente conquistada em questão de horas. O domínio do ar foi facilmente obtido por uma ofensiva geral iniciada ao amanhecer de 1º de setembro. Levas de bombardeiros simplesmente sobrevoaram os aeródromos poloneses e destruíram os aviões pousados. Os que levantaram vôo foram derrubados pelos caças que escoltavam os bombardeiros e que depois, em vôos rasantes, metralharam os sobreviventes. Sem nenhuma defesa contra outros ataques aéreos, os poloneses ficaram completamente vulneráveis no tocante a pontes, pátios de manobras ferroviárias, centros de produção, instalações militares e colunas móveis. As forças polonesas de defesa compunham-se de quase dois milhões de homens, mas o ataque aéreo alemão impediu sua mobilização, já que todas as comunicações haviam sido reduzidas a um estado de confusão total.
Nenhum aspecto da campanha polonesa deveria surpreender a qualquer um, muito menos aos poloneses. Ela estava inteiramente de acordo com os métodos de Hitler. (Os russos, apesar de estarem presos à Alemanha pelo seu pacto de não-agressão, em menos de dois anos sofre-riam precisamente o mesmo tipo de ataque inicial pelo bombardeio dos seus aeródromos; e estariam igualmente despreparados.) Mas as forças polonesas estavam sendo reunidas para rechaçar um ataque que se realizasse dentro dos moldes tradicionais de 1914. Seu Comandante-Chefe, Marechal Smigly-Rydz, parece ter sido o primeiro a ser desarmado – no sentido não-militar. Hitler havia-lhe assegurado. através de Goring, em 1937, que a Alemanha não tinha nenhum interesse territorial na Polônia. Outro fato que o desarmou: quando o ataque alemão era clara-mente iminente, Smigly-Rydz supunha que ele se desenrolasse segundo as regras de 1914.
Não só os poloneses como também os teóricos militares da Grã-Bretanha e França sofriam da ressaca de pensar em termos de cargas de cavalaria e outras manobras obsoletas e, nos primeiros estágios da guerra, ficaram completamente aturdidos com o planejamento e execução impla-cável, mas perfeitamente lógicos, de Hitler, lançando ao mundo a primeira Blitzkrieg.[17]
Desde então, isto passou a ser admirado como a intuição de Hitler. Há uma tendência para supor que ele tinha algum poder quase sobrenatural que lhe permitia antecipar-se às manobras militares dos adversários. De fato, nos primeiros estágios da guerra, seus mais poderosos opositores, os franceses, só conseguiam realizar manobras do tipo mais pusilânime. Mas Hitler nunca teve quaisquer poderes sobrenaturais; não estava aliado a nenhum feiticeiro. Sua intuição não passava da percepção psicológica que lhe permitia identificar-se com a nação humilhada por Versalhes. Era simplesmente uma compreensão sólida da natureza humana em geral e do caráter dos seus adversários em particular. (No sentido particular, não era uma compreensão infalível, como o demonstrou a sua ignorância do caráter britânico e do norte-americano; mas seus fracassos ocasionais mostraram que não havia nada de sobrenatural nisso.) Assim como sabia, e tinha afirmado inequivocamente no Mein Kampf, que a reiteração interminável de uma mentira demonstrável transforma-a efetivamente numa verdade demonstrável, também sabia que nada tinha a temer dos franceses em 1939.
Ele deduzira corretamente que, depois da Primeira Guerra Mundial, os franceses seriam obsecados pela defesa, pela segurança dentro das suas próprias fronteiras. Os dois sucessivos Comandantes-Chefes de pós-guerra, Pétain e Weygand, deixaram isso bem claro. O povo vira o massacre inútil da juventude francesa na ofensiva sangrenta planejada pelo General Nivelle, em 1917, e não estava com ânimo algum para tolerar outros generais de idêntica mentalidade; tampouco tinha qualquer interesse em ampliar suas fronteiras. Ele passaria anos lambendo seus terríveis ferimentos e gastaria trilhões de francos para encerrar-se em barricadas. A Terceira República corria o risco de colapso e a dignidade da civilização francesa fora fendida por uma vitória infrutífera em 1918. Somente os poderosos bastiões, atrás dos quais a república poderia preo-cupar-se e criar um imenso exército de defensores franceses, é que satisfariam à nação.
Hitler estava certo em tudo isso – na verdade não precisava de muita agudeza psicológica para perceber o óbvio. As inexpugnáveis fortifi-cações a serem construídas em nome do Ministro da Guerra, André Maginot, tiveram início em 1930.
Superficialmente, a Linha Maginot compensava em inexpugnabilidade o que lhe faltava em bom senso. (Ela deixou sem defesa a fronteira com a Bélgica, por cujo território, militarmente ideal, os alemães, desde tempos imemoriais, sempre atacaram a França.) Mas nesse caso, a inexpugna-bilidade não passava de uma ilusão confortadora; era, quase que literalmente, o mesmo que enfiar a cabeça na areia – pois as complicadas fortificações foram construídas bem enterradas. Eram tocas, equipadas com suprimentos e munições, com conforto e comunicações para resistir a qualquer sítio. Os poderosos canhões da Linha estavam voltados para a Alemanha e eram protegidos por aço e concreto impenetráveis. O túmulo da França – como o chamou o General J. F. C. Fuller – custara uma astronômica fortuna, dinheiro demais por um soporífero, o que realmente revelou ser. Os franceses não queriam lutar; seu enorme exército – só na Linha Maginot havia pelo menos 26 divisões – estava eivado de traição de alto a baixo e não queria nada mais ativo (como diz Fuller) do que ficar na Linha Maginot, recortar La Vie Parisienne para decorar suas trin-cheiras com retratos de mulheres provocantes e reclamar que queria ir para casa.
Quando a Linha Maginot ficou pronta, em 1935, Hitler já alcançara o poder absoluto como Führer, Chanceler, Presidente, déspota absoluto e o flautista de Hamelin da nação alemã. Esse homem repelente conseguira inocular o vírus da vanglória em uma nação inteira e, com a ajuda de hábeis propagandistas como Goebbels, o mito da Raça Superior. Ao fazer isso, ele forjara uma espada poderosa, a espada da confiança. Hipno-tizados pela repetição incessante que seu Führer fazia do tema, e pela cadeia de variações deste, os alemães dançavam ao som do triunfo extático.
Como a confiança da França repousava apenas na inexpugnabilidade da Linha Maginot", não é de surpreender ouvir-se Hitler dizer ao jornalista inglês G. Ward Price, em Berchtesgaden, em 1938: Estudei a ‘Linha Maginot’ e muito aprendi com ela. O muito que aprendera resultara de muito pouco estudo. A Linha terminava onde começava a fronteira belga; não era preciso estudá-la mais. Quanto ao volumoso grupo de soldados franceses presos defensivamente dentro dela: É um axioma da arte da guerra que o lado que fica dentro das suas forti-ficações é derrotado. O refrão é de Napoleão, mas a verdade é tão velha quanto a guerra. Somente alguns poucos militares franceses tiraram a cabeça das areias da Maginot o bastante para alertar o governo contra o perigo. Um deles foi o Coronel de Gaulle e o outro foi o General Guillaumat: É perigoso deixar que se propague a idéia falsa e desmoralizadora de que, uma vez que tenhamos fortificações, a invio-labilidade do nosso pais estará garantida e de que elas são um substituto para o trabalho árduo de preparação das vontades, dos corações e das mentes. Ninguém deu atenção à advertência. O povo francês estava adormecido, narcotizado pela Maginot. Ele estava moralmente podre, fisicamente flácido e, pela aparência, mentalmente perturbado.
Como o historiador Políbio observou há dois mil anos, cabe ao general criar um espírito belicoso, pois de todas as forças na guerra, esta é a mais influente. Cabe também ao general tirar partido das armas assestadas contra ele. Quanto ao primeiro ponto, Hitler elevou o moral do povo alemão a um estado equivalente à superioridade numérica em homens e armas; quanto ao segundo, inter allia, ele fez intrigas para infiltrar a ideologia hostil do comunismo na França, onde ela completou a desmoralização do povo com a sua mácula. Assim, até o dia 3 de setembro de 1939, ele criara condições desfavoráveis. Mas com a invasão da Polônia e a inevitável e conseqüente declaração de guerra pela França e Grã-Bretanha, ele forçara uma decisão que submeteria sua habilidade de estrategista a um teste gigantesco.
Uma das características de Hitler era a sua incapacidade de delegar. Este era um corolário natural do seu despotismo. Ele queria tomar todas as decisões e assumir toda a responsabilidade e, se tivesse podido assumir o controle divino de tudo, da estratégia principal ao desenho dos botões das suas tropas, teria sido um general divino. Mas entre ele e tal condição estavam os generais do seu Alto-Comando, que eram simples humanos, sem nenhuma aspiração a divindade, e eram administradores muito mais capazes do que seu Führer, que odiava o trabalho sistemático tanto quanto odiava a delegação de poderes.
A prática militar normal está em nomear comandantes pela sua perícia nos vários aspectos da estratégia, consultá-los e coordenar seus conselhos. Um plano geral de campanha é então desenvolvido e os comandantes recebem ordem para pô-lo em prática nos seus vários estágios.
Hitler funcionava da maneira inversa. Seu ódio pela delegação de poderes se baseava na desconfiança. Como todos os megalômanos, ele temia rivalidade, temia qualquer outra mão nas rédeas do poder que não a sua. Quando estava preso na fortaleza de Landsberg, astutamente desen-corajara todas as tentativas dos seus adeptos para reviver o proscrito Partido Nazista, porque não poderia liderá-lo enquanto estivesse na prisão, mas tão logo foi libertado, rapidamente atirou-se à tarefa de res-taurar o Partido, de liderá-lo. E a obtenção do poder absoluto, durante a primeira metade da década de trinta, foi coroada pelo seu próprio decreto que dizia inequivocadamente: Doravante exerço pessoalmente o comando imediato de todas as forças armadas.
Como até mesmo Hitler podia ver a impraticabilidade de estender seu comando, como uma teia, por todas as ramificações da organização, ele fez uma concessão à ortodoxia militar, criando o Alto-Comando, o OKW. Todavia tratava-se de um organismo controlado pelos lacaios favoritos de Hitler, e não era uma comissão consultiva influente. Ele servia como um computador para elaborar os detalhes dos grandes desígnios de Hitler e também o informava o que era prático ou não e, nesse sentido pode-se talvez dizer que era consultivo. Entretanto, Hitler convocava o Alto-Comando já com sua decisão tomada. Quando a decisão coincidia com a opinião do Alto-Comando, tudo corria normalmente; quando suas recomendações eram destroçadas na balbúrdia daquilo que Hitler chamava conferências, ele se recusava a considerar qualquer questão de emenda – então o Führer fazia prevalecer a sua vontade de ferro.
Naturalmente, os chefes do exército muitas vezes ficavam ressentidos com esse tratamento. Afinal de contas, eles eram táticos e estrategistas ex-perimentados, e sentiam-se capazes de opinar sobre qualquer situação militar. Era humilhante serem tratados com desdém, apenas porque seus pontos de vista não levavam em conta as manobras dos politiqueiros. E, como todo o curso da história alemã pós-Versalhes o demonstrou, a humi-lhação é extremamente perigosa. Ela resultou em conspirações que só foram neutralizadas pela infiltração da polícia secreta de Himmler nas Forças Armadas. Algumas conspirações jamais foram de todo neutra-lizadas, apesar das atividades traiçoeiras do chefe das SS. Um plano para raptar e derrubar Hitler só foi – ironicamente – frustrado pelas trêmulas súplicas de Chamberlain em Munique, em 1938. A tentativa de assassinato no plano da bomba, a 20 de julho de 1944, só falhou no grau da sua eficácia, e houve pelos menos cinco outros atentados contra sua vida.
Todos os ditadores são sujeitos às tentativas invejosas de outros magalômanos de usurpar o poder; mas os generais de Hitler que tramaram contra ele estavam apenas preocupados em evitar os desastres que viam germinar nas suas decisões. Eles o aconselharam insistentemente contra o ataque à Tchecoslováquia, em 1938. Ele era como um homem enlou-quecido", diz Brauchitsch. Comandante-Chefe do exército, falando sobre uma reunião em que o Alto-Comando permanecera firme. Ele suava, gritava, havia espuma em seus lábios, e durante minutos sua fala foi incoerente. Só depois de uma terrível tempestade é que compreendemos que era sua vontade inalterável esmagar a Tchecoslováquia"
O que frustrava o Alto-Comando é que Hitler repetidamente mostrou estar certo. Isto embotou a capacidade de discernimento e a autoconfiança do seu Estado-Maior. E, como resultado, este organismo de alto gabarito profissional não pôde ajudar a Hitler nas campanhas vitais do final da guerra.
Hitler muitas vezes demonstrou desprezo pelo Alto-Comando, em generalizações incorretas como: Nenhum general jamais dirá que está pronto para atacar; nenhum comandante travará qualquer batalha defensiva antes de procurar uma linha mais curta. Ele próprio era um amador inspirado em estratégia militar. Conhecia todas as teorias segundo Clausewitz, as batalhas clássicas de Dario e Alexandre, as manobras de Anibal em Cannae e de Frederico, o Grande, em Leuthen; e, embora raramente visitasse a linha de frente, sabia como reagia o soldado em cam-panha, e tinha sólida noção de suas necessidades. Afinal de contas, ele próprio fora combatente e provavelmente sua Cruz de Ferro lhe fora concedida por algum ato de bravura, embora a citação jamais fosse divulgada.
De qualquer modo, justifica-se um pouco de benevolência ao analisar-se a fuga um tanto rápida do local da ação, no putsch de 1923. Conside-remos que a coragem só é na realidade virtude quando dirigida pela prudência.
As maneiras como ele expressava desprezo pelo Alto-Comando são menos reveladoras do que suas razões para isso. Entre as possíveis razões deve-se incluir o ódio que na adolescência sentira pelos militares, quando um jovem oficial lhe roubara os afetos de Stefanie. Também havia muitas provas de que o Estado-Maior imperial alemão apressara a entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial, por introduzir ataques submarinos indiscriminadamente; por destruir as esperanças de paz com a Rússia, exigindo que se estabelecesse um Reino da Polônia e enviando Lenine e seus colegas, emigrados de Genebra, para a Rússia, em 1917, e dirigira mal a batalha de Verdun, em 1916, prolongando, dessa maneira, a guerra. Mas havia uma causa ainda mais profunda para o seu desprezo: o espírito reacionário que, segundo ele dizia, eivava os altos escalões do exército como resultado da esterilidade dos Habsburgos, da astúcia judaica e da doença maçônica do favoritismo na. distribuição dos altos cargos.
Quando da declaração de guerra dos Aliados, a 3 de setembro de 1939, Hitler podia dar-se ao luxo de rir na cara dos seus generais. Eles não tinham nada que os apoiasse em sua folha de serviço. As sugestões que haviam apresentado durante a fundação do Reich dos Mil Anos do seu Führer haviam sido por ele recusadas com fúria despótica, ou foram friamente ignoradas. Desde o momento em que desaconselharam a reocupação da Renânia, como a primeira demonstração de que os tentáculos do Reich iam-se movimentar, até os reiterados avisos desestimuladores do ataque à Tchecoslováquia, eles foram considerados errados. E mesmo com a declaração de guerra pela Grã-Bretanha e França, eles tiveram a desconcertante satisfação de ver a Polônia cair ante seus exércitos com pouco mais de um ligeiro esforço. O Alto-Comando olhava timidamente para o seu Comandante-Supremo, temeroso das suas intuições. Para onde elas se dirigiriam a seguir?
O estrategista em ação
Nós, alemães, conhecemos bem, por experiência, quanto é duro contrariar a Inglaterra". "Nenhum sacrifício será demasiado para a termos a nosso lado: renúncia a nossas colônias, ao poderio naval, à concorrência industrial. A Inglaterra é nossa aliada natural. – Hitler
Embora o destino da Polônia, para todos os efeitos, estivesse selado poucas horas depois do "golpe" de 1º de setembro, o reconhecimento da derrota só foi anunciado a 27, dez dias depois que o governo polonês se internou na Romênia. Naquele dia, Varsóvia rendeu-se após devastador ataque aéreo e de artilharia. Como gatos empanturrados de leite, as duas nações vitoriosas, Alemanha e URSS, afirmaram que não havia nada mais pelo que lutar:
Depois da solução definitiva dos problemas resultantes do colapso do estado polonês, servirá ao verdadeiro interesse de todos os povos pôr fim ao estado de guerra existente entre a Alemanha, a Inglaterra e a França.
Assim, Ribbentrop e Molotov foram os porta-vozes de Hitler. Era uma oferta inútil de paz, nada mais do que um arremedo de boas intenções. Como vimos, Hitler já declarara secretamente ao Alto-Comando a determinação de esmagar a Rússia. Certamente, a paz no Ocidente teria servido àquela finalidade e tentar alcançá-la era um movimento politicamente sensato, já que dava a impressão de que as suas exigências territoriais realmente haviam terminado e de que a Alemanha era antes vítima do que agressora. Oferta de Paz de Hitler – Nenhuma Intenção Bélica Contra Grã-Bretanha e França – Redução de Armamentos – Conferência de Paz – bradavam as manchetes do Völkischer Beobachier; e quando Chamberlain e Daladier recusaram a oferta vazia, a manchete, mais gritantemente ainda, anunciou: Grã-Bretanha Prefere a Guerra. Mas tais aberturas não passavam de tentativas de autodefesa. Agora que elas tinham sido recusadas, Hitler podia perseguir seus desígnios maiores.
Estou decidido a agir agressivamente e sem muita demora, disse ele na Diretiva n° 6, de 9 de outubro. A Rússia, acalmada com um pacto de paz e comércio, com os países bálticos e com metade da Polônia como prêmio material, podia esperar, enquanto a Alemanha se entendia com a Europa Ocidental.
Estrategicamente, Grã-Bretanha e França haviam favorecido os planos de Hitler. Grande parte do enorme exército francês estava agachada na Linha Maginot; a Força Expedicionária Britânica, comandada por Lorde Gort, chegara tardiamente à França, durante o outono e o inverno. Os dois aliados haviam-se metido numa posição de comprometimento com o tratado para ajudar a Polônia. Agora, com esta vencida, eles estavam pensando sombriamente no que fazer em seguida. Com mais de 100 divisões francesas espalhadas pela França e com a força efetiva de Hitler concentrada na Polônia durante todo o mês de setembro e boa parte de outubro, os Aliados pararam para considerar seu plano de ação, se é que havia algum[18].
Hitler não ficou pensando no que fazer a seguir. Convenientemente para ele, parte da Força Britânica cruzou o Rio Lys, ao longo da fronteira franco-belga. Assim, já havia uma desculpa para invadir a França, a fim de impedir a nítida intenção das forças britânicas e francesas de invadir os Países Baixos – um golpe tipicamente hitlerista.
Seus generais, cientes da sua fraqueza militar por toda a parte, exceto na Polônia, e novamente apoiando sua estratégia naquilo que Hitler considerava noções obsoletas e fracas, não viam sentido em estender uma guerra que podia muito bem ser concluída triunfalmente com um com-promisso, se o inimigo defensivo franco-britânico não fosse obrigado a entrar em ação. Eles apresentaram uma desculpa após outra para a inação: a iminência do inverno, a inexpugnabilidade da Linha Maginot, dúvidas de que as forças na Polônia pudessem ser reequipadas e trans-feridas para o Ocidente, as imensas perdas que se teria de enfrentar... É certo que suas desculpas se baseavam em raciocínio militar convencional; mas também havia uma desconfiança subjacente na liderança do seu Führer. Sua desu-manidade fora expressada com demasiada freqüência em formas extremas de violência para com os que se opunham a ele – como o expurgo de 1934. A desconfiança levava a planos conspiratórios contra sua vida. Um deles pareceu chegar à beira do sucesso, quando uma bomba explodiu num salão em Munique, onde ele falava, a 8 de outubro de 1939, mas não passava de uma trama cuidadosamente preparada pela Gestapo para lhe permitir dizer: Agora tenho certeza! O fato de que saí do salão antes que a bomba comunista explodisse é uma confirmação de que a Providência quer que eu atinja minha meta[19]. A Providência, é óbvio, não queria nada disso; mas a oposição entre os generais consolidou-se pelo acontecimento. Já então Hitler ordenara que o ataque do Ocidente devia começar a 12 de novembro.
Porém, isso não aconteceu. O Führer era bastante astuto para se permitir aceitar o conselho do seu Comandante-Chefe do exército, Walter von Brauchitsch, e de Franz Halder, seu Chefe do Estado-Maior, para que adiasse o ataque por causa do inverno. Ele viu que, assim fazendo, poderia mais tarde atirar-lhes ao rosto a pecha de incompetência e justificar sua recusa em continuar sendo influenciado por eles. Embora pretendesse aceitar seu conselho, um ataque de inverno no Ocidente não estava de acordo com sua intuição, apesar da urgência com que apressara seus preparativos. Sua megalomania ganhara intensidade, com o grande sucesso na Polônia. Ele estava decidido a assistir a outra derrocada. E, com a Grã-Bretanh ainda se preparando apressadamente para a guerra, não poderia haver surpresa. Os militares britânicos de linha, os do exér-cito territorial e os convocados, ainda careciam de armas e equipamento, quando se declarou a guerra. A medida que chegavam à França e toma-vam posição defensiva ao longo da "Linha Maginot" e da fronteira belga, era evidente para Hitler que dificilmente mereceriam o esforço de um ata-que total. Mas, na Grã-Bretanha, a convocação e o treinamento estavam progredindo mais ou menos regularmente e a produção de material bélico tomava impulso. Na primavera haveria no continente europeu uma força britânica digna de ser derrotada. Hitler podia dar-se ao luxo de esperar. Pode custar-me um milhão de homens, disse ele a Ernst Weizäcket, Secretário do Ministério das Relações Exteriores, mas custará o mesmo ao inimigo – e ele não pode resistir a isso.
Entrementes, seus golpes mais eficazes podiam ser assestados contra o poderio marítimo; assim, durante todo o inverno de 1939-40 – o período que, por falta de atividade, passou a ser chamado de a guerra falsa – quem lutou foi a marinha. O couraçado-de-bolso Graf Spee afundou nove navios mercantes ingleses antes de ser empenhado em batalha, a 13 de dezembro, e perseguido até o Rio da Prata, onde o seu comandante o meteu a pique. Anteriormente, os submarinos alemães haviam afundado o couraçado Royal Oak em Scapa Flow e o cruzador mercante armado, Rawalpindi, fora afundado numa batalha contra o Scharnhorst e o Gneisenau. Mas mesmo no mar não houve embates espetaculares. Parece que a capitulação da Polônia havia posto os dois lados em horrorizada inanidade, disse um dos jornais neutros da República Irlandesa com surpreendente credulidade e semântica duvidosa. A inanidade de Hitler não era de modo algum horrorizada, tampouco era inanidade. Ele estava planejando cuidadosamente uma operação que considerava essencial para que as potências ocidentais fossem completamente derrotadas – a invasão da Noruega.
Esse plano é um dos exemplos notáveis da sua habilidade de estra-tegista. O controle da longa costa norueguesa, com seus inumeráveis na-coradouros e fiordes, lhe daria bases navais e aéreas para ataques às rotas marítimas aliadas no Atlântico Norte. Para neutralizar esses ataques, as forças navais e aéreas britânicas e francesas teriam de ser retiradas de ou-tras áreas vitais – por exemplo, do Mediterrâneo e do Mar do Norte; e Hitler estava particularmente interessado na vulnerabilidade do Mediterrâneo, já que seu domínio representava a abertura de uma porta para as possessões francesas na África do Norte. Também se devia considerar a grande vantagem material da obtenção do controle da imensa produção de minério de ferro da Noruega. Negada ao inimigo, a falta desse produto vital poderia fazer uma diferença importante para a sua fabricação de armamentos.
Hitler afirmava que a concepção da campanha norueguesa era sua. É verdade que o Almirante Raeder sugerira, numa conferência a 10 de outu-bro de 1939, que a captura de bases norueguesas lhe permitiria desafiar a supremacia naval britânica; mas o Führer rejeitou furiosamente a suges-tão – uma reação psicologicamente justificada. Ele estava reagindo cara-cteristicamente à tentativa de um dos membros do seu Alto-Comando de lhe roubar uma idéia notável. Era uma idéia brilhante e Hitler sabia disso, não pretendendo deixar que qualquer crédito pela sua realização lhe escapasse. Portanto, rejeitar furiosamente a sugestão de Reader era apenas uma imposição da sua vaidade, que não admitia que lhe negassem a pater-nidade de qualquer idéia brilhante.
Antes de me tornar Chanceler, dissera ele para justificar a usurpação do poder supremo, eu pensava que o Estado-Maior era como um mastim que se tem de segurar com firmeza pela coleira porque ameaça toda gente. Desde estão, passei a reconhecer que ele não é nada disso. Ele tem sistematicamente tentado impedir toda ação que julgo necessária. Sou eu quem sempre tem de açular esse mastim.
Por enquanto, o Estado-Maior ficou inteiramente às escuras sobre a operação norueguesa, já que ele dificilmente poderia rejeitar a sugestão de Raeder e depois parecer adotá-la. Aliás era desnecessário informá-lo. Por que devo desmralizar meu inimigo por meios militares se posso faze-lo muito melhor e mais barato de outras maneiras? escrevera Hitler no Mein Kampf. As outras maneiras eram, no caso da Noruega, o estabe-lecimento da Quinta Coluna de simpatizantes nazistas de Vidkun Quisling[20]. O General Fuller disse que Hitler sabia que, num país democrático, um exército é praticamente inútil se o povo simpatizar com o inimigo... razão por que os governos autocráticos organizam sempre dois exércitos, um para combater um possível inimigo, e outro para controlar o povo.
Quisling, como Hitler, era um rancoroso e temível inimigo do comu-nismo e, por assim dizer, prostara-se perante o líder alemão. Suas mesuras não eram desinteressadas. Esperava ser um dia o Führer da Noruega. O partido que formara para segui-lo, que chamou de Nasjonal Samling (Unidade Nacional), fora desdenhosamente tratado pelo eleitorado e só recebeu dois por cento dos votos, e nenhuma cadeira no parlamento. Secretamente desanimado por essa reação, ele, porém, usou das suas liga-ções no exército – era major e fora Adido Militar em Moscou – para divul-gar as idéias nazistas entre as forças armadas. Essas tentativas tiveram êxito considerável: a insistência incessante de Hitler nas virtudes militares das raças nórdicas não deixou de ter seu efeito de propaganda.
Assim, quando a guerra começou, Quisling foi ao encontro de Hitler em Berchtesgaden para discutir os assuntos da Sociedade Tule, uma orga-nização que usava a mitologia nórdica para disfarçar suas atividades polí-ticas sub-reptícias (ver nota 3). Os assuntos discutidos nessa ocasião foram as táticas do Nasjonal Samling. O próprio Hitler redigiu as metas daquele partido. Eram elas: restringir o poderio naval britânico pelo estabelecimento de bases navais e aéreas na costa ocidental da Noruega; opor-se às comunicações marítimas entre a Grã-Bretanha e a Rússia Seten-trional; abrir o Mar do Norte e o Atlântico para a frota alemã e garantir a rota marítima para o transporte de minério de ferro para a Alemanha. A ajuda de Quisling nessas atividades secretas seria recompensada com a liderança do governo norueguês, tão logo a invasão alemã se mostrasse bem sucedida. A recompensa final de Quisling seria a apresentação do memorando de Hitler como prova contra ele, em seu julgamento em Oslo, por traição, em outubro de 1945.
Depois de muita troca de lisonjas, Führer e semi-Führer despediram-se. Hitler vislumbrara nesse novo capanga traços de megalomania. Era de virulência inferior à sua e, portanto, poderia ser transformada em subserviência; mas devia ser vigiado. Quisling, disse Hitler mais tarde a Himmler, deve ser desacreditado tão logo tenha servido à sua finalidade. Em nenhuma circunstância devemos permitir-lhe poderes absolutos. Mas, a cenoura estava adiante do burro – um burro de Tróia a quem se poderia entregar com segurança a tarefa da organização de metade da batalha pela Noruega.
Assim, à parte a relutância de Hitler em permitir que qualquer poder estratégico caísse nas mãos do seu Estado-Maior, tal coisa não foi neces-sária no caso da campanha norueguesa. Tudo o que se precisava na Ale-manha era o treinamento intensivo de tropas austríacas em guerra de mon-tanha, o que foi feito imediatamente. Seu comandante, o General von Falkenhorst, recebeu apenas noções muito imprecisas sobre o local da sua próxima expedição – porém, como soldado experimentado que era, de pouco mais do que isso precisava.
Hitler continuava prevaricando e a parecer deixar-se influenciar pelo Alto-Comando e pelo Estado-Maior, cujo conselho insistente era no senti-do de adiar o ataque no Ocidente.
Nesse meio tempo, os russos invadiram a Finlândia, lançando no ataque uma volumosa massa humana com a qual pensavam, alegremente, fazer curvar aquele pequenino país em poucos dias e dar ao seu poderoso conquistador o porto de Hangö, para a base naval que os russos queriam montar a todo custo. Mas não foi uma conquista fácil. Embora os russos fossem numericamente superiores – eles tinham 100 divisões contra as 3 finlandesas – foram incrivelmente incompetentes em organização e estratégia. A resistência dos finlandeses – conduzidos pelo Feldmarechal Mannerheim – manteve o inimigo em cheque de 30 de novembro de 1939 a 10 de março de 1940, infligindo sérias baixas às forças russas. No final, foi simplesmente a força bruta, o lançamento na batalha de centenas de milhares de soldados e aviadores russos, que fez a Finlândia render-se às tropas do Marechal Timoshenko. O triunfo foi orgulhosamente alardeado pelo Pravda, o órgão do partido, mas era evidente que o moral russo fora reduzido quase a zero por uma campanha que se prolongara, dos 3 dias programados, por mais de três meses, devido à resistência que os finlan-deses opuseram aos invasores, apesar da enorme diferença de força.
Isso ficou mais claro para Hitler do que para qualquer outro. Pensando na sua declarada intenção de esmagar a União Soviética, ele confidenciou com Keitel, seu Chefe do Estado-Maior, que a derrota moral da Rússia comunista para um país pequenino como a Finlândia prova, inequi-vocamente, que ela não tem chance alguma contra o poderio organizado do Reich. Nas circunstâncias, era um julgamento sensato. Mas, como descobriria por experiência própria, ele não levara em conta o fato de que as melhores lições são aprendidas nas derrotas, e não nas vitórias. Os russos aprenderam a sua na Finlândia.
O período da guerra falsa terminou em abril de 1940, com o sucesso rápido e completo da invasão norueguesa. Os métodos de Quinta Coluna de Quisling revelaram-se inestimáveis. Seus traidores ocuparam Oslo e ajudaram as tropas aeroterrestres alemãs que saltaram na capital. As tropas que vieram por mar foram transportadas escondidas nos porões de navios mercantes que se dirigiam do Kattegat para Oslo, para completar a ocupação daquela cidade. A Dinamarca foi invadida no mesmo dia (9 de abril) e capitulou sem resistência, tendo recebido a promessa de Hitler de que sua independência política seria respeitada. (Desnecessário dizer que não foi.) Ao anoitecer, todos os pontos-chave da Noruega – Oslo, Kristiansund, Trondheim, Bergen e Stavanger – estavam nas mãos de Falkenhorst.
Na Grã-Bretanha, muitos encararam a campanha como um ato de loucura. Churchill – na época Primeiro Lorde do Almirantado – disse: Considero a atitude de Hitler, em invadir a Escandinávia, um erro estra-tégico e político tão grande quanto o cometido por Napoleão em 1807, quando invadiu a Espanha... Acho que temos uma grande vantagem com o ocorrido, contanto que aproveitemos ao máximo o erro estratégico que o nosso mortal inimigo foi levado a cometer.
Longe de aproveitar ao máximo a ocasião, atrasos e confusões resul-taram apenas na tentativa heróica, mas inútil, de arrancar o poder dos alemães mediante ataques marítimos e aéreos combinados contra os portos de Trondheim, Aandalsnes, Narvik e Namos. Estes só começaram a 15 de abril, quando já então o inimigo estava firmemente estabelecido em todos os pontos-chave. De qualquer modo, os esforços das forças naval e aérea foram tão mal integrados que o desembarque de tropas nos fiordes não pôde ser feito com rapidez suficiente e os caças britânicos não podiam enfrentar os bombardeiros germânicos, porque todos os aeró-dromos estavam em mãos alemães. (Um projeto aloucado de se aterrissar uma esquadrilha de aviões num lago congelado próximo de Dombaas resultou na sua inevitável destruição.) Estando a tentativa condenada desde o começo, o Supremo-Conselho de Guerra Aliado sacudiu-se e decidiu retirar todas as tropas da Noruega central a 27 de abril, deixando um punhado no norte, para fustigar Narvik.
A conduta lamentável da campanha na Noruega resultou na expressão da opinião de todo o país, quando L. S. Amery citou no Parlamento britâ-nico as palavras de Cromwell perante o Long Parliament [21]: Haveis fi-cado aqui por tempo demasiado para qualquer coisa boa que tenhais feito. Ide, digo-vos, e nada mais tenhamos convosco. Em nome de Deus, ide-vos! Dois dias depois, Chamberlain demitiu-se e Churchill tornou-se Primeiro-Ministro. Pelo menos isso fora alcançado.
Agora, tornava-se claro que, longe de ser um ato de loucura, o pri-meiro golpe de Hitler, desde a declaração da guerra contra a Dinamarca e a Noruega, fora perfeitamente sincronizado, pois foi seguido quase que imediatamente pelo segundo. Amanheceu o dia 10 de maio, registrou Churchill em sua História da Guerra, e com ele veio a tremenda notícia. Caixas com telegramas despejavam-se do Almirantado, do Ministério da Guerra e do Foreign Office. Os alemães haviam desfechado seu golpe há muito esperado. Holanda e Bélgica foram invadidas. Suas fronteiras foram cruzadas em numerosos pontos. Todo o movimento do exército alemão para a invasão dos Países Baixos e da França tivera início.
A justificativa de Hitler para despejar seus exércitos na Bélgica. e na Holanda foi, como da vez anterior, impedir a clara intenção da Grã-Bretanha e da França de invadir território indefeso. Seu sincronismo continuou sendo perfeito. Havia agora na França uma Força Expedi-cionária Britânica digna de ser atacada e que consistia de sete regimentos de tanques leves, um regimento de antiquados carros blindados, dois batalhões de tanques de infantaria (o armamento de tais tanques era uma única metralhadora) e treze divisões de infantaria, das quais não se podia contar com três, que não tinham nenhuma artilharia para apoiá-las, e com-tavam apenas com uns restos de transportes para sua locomoção. Todo o apoio aéreo da Força Expedicionária Britânica consistia de uma brigada de caças e uma de bombardeiros da Real Força Aérea e suas linhas de comunicação eram excessivamente longas, estendendo-se até Le Havre, Brest e Nantes. A qualidade de combate da Força residia quase que intei-ramente nos seus homens. Seus blindados eram excessivamente frágeis para as armas que deveriam enfrentar; ela era mal-equipada e vulnerável a ataque aéreo. Entretanto, apesar de sua fraqueza, sua derrota seria um duro golpe para os Aliados.
Hitler também tinha de enfrentar os exércitos franceses, como bem sabia. Havia 102 divisões. Quarenta delas estendendo-se do Canal da Mancha à Linha Maginot; 26 estavam na própria Linha e 36 estavam alinhadas diante dos Alpes Marítimos. Naturalmente, elas sempre esti-veram ali, sendo um total mistério para o Estado-Maior alemão o fato de não se tê-las movido desde o começo da Guerra. O General Siegfried Westphal diz, em The German Army in the West:
Todo perito que naquela época (setembro de 1939) servia no Exército Ocidental ficava arrepiado em pensar na possibilidade de um ataque francês imediato. Era incompreensível que tal não acontecesse e que a espantosa fraqueza da defesa alemã fosse desconhecida dos líderes fran-ceses. Se estes tivessem lançado o peso das suas forças numa ofensiva em setembro de 1939, quando da campanha polonesa, teriam alcançado o Reno em duas semanas. As forças alemães imediatamente disponíveis no Ocidente eram fracas demais para bloquear um assalto francês, ou mês-mo para ameaçar seriamente os flancos da cunha de ataque. Natural-mente, unidades teriam de ser rapidamente transferidas da Polônia para o Ocidente, mas, porém, as forças aéreas francesa e britânica danifica-riam as linhas de comunicação dentro da Alemanha o bastante para atrasar toda essa movimentação. O tema dos exercícios do EstadoMaior... era o rechaço a um ataque francês pelo exército alemão, partes do qual tinham de ser retidas no Leste, por causa da Polônia. Nesses exercícios, os franceses rompiam o estreito espaço de menos de 200 quilômetros entre o Mosela e o Reno, prosseguiam ao longo da margem norte do Mosela e, finalmente, cruzavam o Alto Reno, na região de Karlsruhe. Em cada caso, eles teriam conseguido penetrar até o Reno no decorrer de poucas semanas, embora se admitisse que um número muito maior de divisões e, em particular, a maioria das ativas, estava participando da defesa alemã.
Embora fosse incompreensível para o Estado-Maior alemão que não tivesse havido nenhum ataque Aliado em setembro de 1939, isso não era mistério para Hitler. Ele observara com desdém os exercícios baseados na premissa de uma penetração francesa em Karlsruhe e observara para Jodl, chefe do Estado-Maior da Wehrmacht: Os franceses estavam obsedados pela defesa em 1920; ainda estão. Eles são como um coelho enfrentando um arminho; ficam imóveis de medo.
Hitler achava que seu próprio exército era fatalmente convencional. Tenho o maior desprezo pela ortodoxia quando ela só pode resultar em idéias fracas. O Estado-Maior se estrangulará com a sua ortodoxia. Hi-tler estivera disposto a deixá-lo fazer isso, entre o outono de 1939 e a primavera de 1940, aceitando suas desculpas para adiar o ataque no Oci-dente com mal disfarçada tranqüilidade que apenas mascarava o receio de que sua intuição sobre a irresolução dos franceses estivesse errada. Mas não estava. O lado que fica dentro das suas fortificações é vencido. Agora que ele garantira a Noruega com um golpe impecavelmente realizado; que os franceses haviam demonstrado ser frouxos e estúpidos, e que os ingle-ses, como de costume, haviam feito sua Força Expedicionária percorrer a França com grande cuidado e sem nenhum objetivo aparente – agora era o momento de desencadear o plano que traçara durante todo o inverno. Daí a avalancha de despachos que espantara Churchill – e, aparentemente, todo o mundo – na manhã de 10 de maio.
Havia dois Comandos entre Hitler e suas forças: o seu, o OKW, Su-premo-Comando de todas as Forças Armadas, e o OKH, o Alto-Comando comum do Exército. Este último era o computador que elaborava os deta-lhes dos seus grandes projetos. Como Hitler dissera, o plano original do OKH para o ataque no Ocidente não era inspirado. Ele repetiria a ação alemã de 1914 – o Plano Schlieffen – com um movimento impetuoso de flanco direito pela Bélgica e Holanda, um centro oposto às Ardenas e um flanco esquerdo defrontando o que era agora a Linha Maginot. O resul-tado teria sido inteiramente previsível, já que os franceses também estariam pensando em termos da Primeira Guerra Mundial – na verdade, por assim dizer, haviam baseado seu plano naquele exato método de ataque.
O General von Manstein, Chefe do Estado-Maior do Feldmarechal von Rundstedt, elaborou um plano alternativo. Ele achava que o ataque principal devia ser feito pelas Ardenas, já que estas eram fracamente defendidas – os franceses acreditavam serem elas muito cheias de bosques para permitir a operação de tanques. Hitler viu de imediato as possibi-lidades desse plano, mas, como aconteceu com a proposta do almirante Raeder para a Noruega, não tinha intenção de parecer maleável nas mãos dos seus generais. Só em fevereiro ele permitiu deixar-se persuadir; mas daí em diante levou o Plano Manstein implacavelmente à frente, diante da oposição que o OKH fazia, alegando ser arriscado demais. Hitler não só ordenou a execução do plano como também – repetindo seu compor-tamento com Raeder – adotou-o como seu. Meu plano resultará numa vitória-relâmpago, disse ele a Halder, na conferência da manhã de 9 de maio, quando foi dada a ordem definitiva para iniciar o ataque. Houvera dezesseis ordens e contra-ordens anteriores.
Dificilmente pode-se dizer que seu otimismo era injustificado. Ao entardecer do dia 10, a Holanda foi invadida. Os ministros holandeses estavam na minha sala, escreve Churchill, pálidos e cansados, com o horror nos olhos. Eles haviam chegado de avião, vindos de Amsterdam. Seu país fora atacado sem o menor pretexto e sem aviso. A avalancha de fogo e aço despejara-se pelas fronteiras e, quando os guardas da fronteira holandesa abriram fogo, iniciando a resistência, houve um ataque aéreo avassalador. Todo o país estava em estado de total confusão. O plano de defesa há muito preparado foi posto em ação; abriram-se os diques e a água inundou tudo, mas os alemães já haviam cruzado as linhas externas e agora percorriam as margens do Reno, cruzando as defesas internas de Gravelines.
Dois dias depois, o ataque principal – 42 divisões, incluindo uma colu-na blindada de mais de 160 quilômetros de comprimento – cruzaram as Ardenas e a fronteira francesa, atravessando o rio Mosa no dia 13. Seu avanço foi fenomenalmente rápido. Não havia virtualmente nada para enfrentá-lo, exceto umas duas divisões francesas de segunda categoria, reservistas idosos, mais ou menos imobilizados pela falta de transporte, que tinham apenas um canhão antitanque para cada quilômetro de linha de frente. Ao longo de toda a linha Louvain-Namur-Pinant-Sedan, onde o resto do Nono Exército francês se postara, desenvolveu-se uma batalha em que as tropas francesas foram liquidadas pelos tanques do General von Kleist em seu avanço, e pelos bombardeios de mergulho terrivelmente efi-cazes dos Stukas de Göring. O General Gamelin, Comandante-Chefe de todos os exércitos aliados, enviou uma dramática, mensagem a Churchill: Estou alarmado ante a velocidade e o poderio do avanço do exército inimigo. Tinha razão de estar alarmado. Seu "Plano D" fora projetado para enfrentar um ataque alemão em setembro de 1939, quando o grosso do exército germânico estava empenhado na Polônia. O plano em nada fora alterado nos oito meses que se passaram desde então, apesar das freqüentes observações dos Chefes de Estado-Maior britânicos, de que o exército alemão ganhava poderio a cada dia que passava, e que suas táti-cas não seriam necessariamente as de 1914. Gamelin, envelhecido e desa-tualizado, não tinha mais como enfrentar uma tarefa daquela envergadura. Deveria ter passado, logo no início do conflito, o comando dos exércitos franceses e britânicos ao General Georges. Contudo, são suportava a idéia de abrir mão do cargo. Entretanto, quando suas medidas vacilantes deram como resultado o desastre que se abria diante de seus olhos, apelava para Churchill, pedindo ajuda – Mais dez esquadrões de caças.
Churchill não tinha caças para lhe dar. Na manhã do dia 15, o Primeiro Ministro francês, Paul Reynaud, telefonou-lhe em tom recri-minador: Fomos derrotados. Estamos vencidos. Perdemos a batalha. Churchill não podia acreditar. Prometeu voar até Paris e conversar, tal como um pai que conforta o filho apavorado durante uma tempestade. Chegou ao Quai d'Orsay às 17:30 daquele mesmo dia. Suas primeiras palavras para Gamelin, depois de ouvir um relato da situação e de compre-ender a sinistra importância da penetração das Ardenas, foram: Onde está a reserva estratégica? Ao que Gamelin respondeu que não tinha. Pen-sando que ele não compreendera a pergunta, Churchill indagou em francês: Ou est Ia masse de manoeuvre? E Gamelin respondeu novamente: Aucune[22].
Agora era a vez de Churchill ficar estarrecido. O que poderíamos pensar do grande exército francês e dos seus mais altos chefes? Nunca me ocorrera que qualquer comandante que tivesse de defender 800 quilô-metros de frente de batalha não se prevenisse com uma reserva estraté-gica. Ninguém pode defender com segurança uma frente tão extensa; mas quando o inimigo se compromete num ataque que rompe a linha de defe-sa, sempre se tem, deve-se sempre ter, um grupo de divisões que se loconova em vigoroso contra-ataque assim que a primeira arremetida parece perder força.
‘Para que servia a 'Linha Maginot'? Ele deveria ter economizado tropas numa grande parte da fronteira, não só oferecendo muitas portas falsas para contragolpes locais, como também permitindo que se manti-vessem maiores forças de reserva; e esta é a única maneira de se agir. Mas agora não havia reserva alguma. Reconheço que esta foi uma das maiores surpresas da minha vida. Por que não soubera mais a respeito, muito embora estivesse tão ocupado no Almirantado? Por que o governo britânico, e sobretudo o Ministério da Guerra, não soubera mais a respeito?
Churchill tinha razão para essas perguntas. Dois anos mais tarde, o mesmo Churchill, espantado, perguntaria a mesma coisa sobre a falta de defesas em Cingapura. Nos dois casos, a resposta simples era que ele jul-gara, erroneamente, que os responsáveis eram aptos para seus cargos.
A profecia de Hitler de uma vitória-relâmpago se cumpriu. Dentro de um mês, o tremendo ímpeto do avanço alemão resultara, seriam, na rendição da Holanda; na rendição da Bélgica; na evacuação de Dun-querque, de 337.131 homens da Força Expedicionária Britânica e do exér-cito francês que haviam caído no cerco entre as forças de von Rundstedt, que avançavam do Sul, e as do General von Bock, que avançavam do Norte; e a ocupação alemã de Paris. O governo francês fugiu para Bordeaux a 14 de junho. O idoso Marechal Pétain substituiu Reynaud como chefe do governo e sua tarefa imediata foi buscar um armistício. Era o fim da Terceira República.
O Führer manobrou o armistício com um toque de malicioso drama, ordenando que fosse assinado no famoso carro-salão ferroviário onde se assinara o armistício de 1918. O carro era uma peça de museu e estava em Réthondes, na Floresta de Compiègne, ao lado de uma pedra gravada com o terrível memorial: Aqui, a onze de novembro de 1918, sucumbiu o criminoso orgulho do império alemão, vencido pelos povos livres que tentou escravizar. William Shirer, o correspondente de guerra que estava presente, diz: Impor um armistício nesse local histórico era a doce vingança de um homem que fora humilde cabo no exército que fora obrigado a entregar-se em 1918 e que não ocultava seus sentimentos. Estando a pouca distância dele, eu via-lhe o rosto iluminar-se, sucessivamente, de ódio, de desprezo, de triunfo...
Durante alguns momentos ele assim ficou no vagão; depois saiu para a clareira ensolarada, deixando para Keitel a tarefa de ler o preâmbulo da declaração – uma declaração que o próprio Hitler redigiu e que devia apagar para sempre, por um ato de justiça reparativa, uma lembrança... de que o povo alemão se ressentia como a maior vergonha de todos os tempos.
Para que não se pense que Hitler observou tudo isso com fria calma ou com um sorriso tranqüilo, enquanto seus exércitos varriam a Europa, que se corrija de imediato essa impressão. Hitler não era nenhum Wellington, embora, tal como sucedia com o Vencedor de Waterloo, os chefes de seu exército até agora se tivessem revelado melhores que seus adversários. Mas Hitler não transmitia nenhuma qualidade a seus generais. Tampouco ele encorajava a sua tolerância.
Durante toda a sua infame carreira, desde um joão-ninguém ate Führer do Terceiro Reich, sempre houve cenas tempestuosas toda vez que as coisas saíam mal ou quando seus generais o contrariavam em suas pro-postas, e muitas vezes também quando não o contrariavam. Sua petu-lância era freqüentemente disfarçada por uma untuosidade enganadora – o sorriso na cara do tigre – quando planejava eliminar alguém que lhe ameaçasse solapar a autoridade. Ele convidara Rohm para o chá, na tarde de 4 de junho de 1934, e fora excessivamente alegre e amistoso enquanto planejava o expurgo do dia 30, quando aquele foi fuzilado depois de receber uma carta do Führer agradecendo-lhe os serviços imperecíveis. Mas todos os seus generais testemunham, em seus diários e em outros re-gistros, as cenas de fúria que com tanta freqüência formavam o pano de fundo das conferências em que se propunham os planos de guerra. Halder, por exemplo, a 18 de maio de 1940:
O Führer continua preocupando-se com o flanco sul. Ele berra que estamos arruinando toda a campanha. Diz que não terá nada que ver com o prosseguimento da operação numa direção ocidental.
E, anteriormente, Weizäcker, na véspera da guerra:
Tornou-se cada vez mais excitado e começou a agitar os braços e gritou no meu rosto:
Se a Inglaterra quer lutar por um ano, lutarei por um ano; se a Inglaterra que lutar por dois anos, lutarei por dois anos. Fez uma pausa e berrou mais alto ainda, agitando-se loucamente: Se a Inglaterra quer lutar por três anos, lutarei por três anos. Os movimentos do seu corpo começaram a acompanhar os dos braços, e quando finalmente berrou: E, se necessário, lutarei por dez anos, ele sacudiu o punho e se dobrou de tal forma que quase tocou o chão. A situação era extremamente embaraçosa, aliás tão embaraçosa que Görin reagiu ao vexame que Hitler dava ao girar nos calcanhares, dando-nos as costas.
Aquele rompante – muito típico – era simplesmente a resposta de Hitler a uma sugestão que Weizäker lhe fizera de que a Inglaterra talvez estivesse mais preparada para lutar do que ele sugerira desdenhosamente.
Também havia ocasiões em que o espanto parecia dominá-lo, ao com-templar os resultados inevitáveis de algumas operações, como se o des-tino lhe tivesse aplicado um golpe injusto. Uma dessas ocasiões foi quan-do seu intérprete, Paul Schmidt, leu para ele o ultimato britânico de 3 de setembro de 1939. Schmidt descreve:
Hitler estava à sua mesa e Ribbentrop, de pé, junto à janela. Os dois ergueram o olhar em expectativa quando entrei. Parei a certa distância da mesa de Hitler e comecei a traduzir lentamente o ultimato. Quando terminei, o silêncio era completo. Hitler quedava-se imóvel, com o olhar fixo. Evidentemente, estava perplexo. Depois de certo tempo, que pareceu uma eternidade, voltou-se para Ribbentrop, que continuava junto da janela. E agora? – perguntou-lhe com um olhar selvagem, como se sugerisse que seu Ministro do Exterior o enganara sobre a provável reação da Inglaterra.
Ao longo de toda a documentação que comenta seu comportamento encontram-se provas da sua instabilidade. Acentuavam-se os efeitos da moléstia que contraíra na juventude, talvez por efeito das drogas que to-mava para combatê-la, talvez por força da ação do Spirochaeta pallida sobre seu córtice cerebral. É extraordinário, escreveu Goebbels em seu diário, em janeiro de 1940, pondo inadvertidamente o dedo no âmago da questão, o quanto o Führer está-se tornando uma ampliação de si mesmo.
É abundante a documentação que dá conta da crescente instabilidade de Hitler, como também da sua ativa determinação de interferir nos planos do Alto-Comando do Exército. Pode-se dizer que só na campanha polonesa é que deixou que seus generais planejassem e executassem minuciosamente uma conquista que se revelou triunfal. Talvez seu triunfo fosse demais para ele. Desde o começo da campanha norueguesa, sua megalomania forçou, como diz Westphal, um abismo entre ele e os líderes do exército alemão que era absoluto e intransponível. Ele surgiu do sempre irreconciliável conflito entre o raciocínio concreto e o abstrato, entre a objetividade sóbria e a perseguição de fantasias, entre o cálculo lógico baseado em fatos e a tentativa de obrigar os fatos a se adaptarem a desejos impossíveis... No Terceiro Reich, o lema era Morte para o perito, particularmente o soldado. Não só Hitler como todo líder do Partido acre-ditavam ter um julgamento mais sólido sobre todas as questões relativas à conduta da guerra do que os líderes do exército.
O General Westphal tem direito a ser rancoroso. Ele era um oficial de estado-maior de grande distinção, sob o comando de Rundstedt, Kesselring e Rommel e não era nenhum reacionário. Ele viu Hitler fazer o sangue correr em rios, sem escrúpulos e reconhecia seu medo tolo de deixar que o menor controle lhe escapasse das mãos como outra mani-festação da sua instabilidade.
Sua experiência era a dos amadores. Durante algum tempo eles têm a sorte do principiante: mostram estar certos onde os peritos estão errados; em sua audácia, realizam muito do que os profissionais não poderiam ter feito, com a mesma rapidez e facilidade. Mas então, na embriaguez do sucesso, perdem contato com a realidade. Isso acontece em todas as atividades da vida, não sendo diferente na arte da guerra. O militar leigo subestima a força do inimigo e dá valor demais às suas próprias potencialidades. Ele vê as coisas não como são, mas como gostaria que fossem. Afasta-se de todos os que são capazes de qualquer admoestação, para que não lancem sombras em seu quadro róseo, e não quer saber dos seus conselhos. Mas quando o amador não é um homem comum, cujo absurdo em breve se torna aparente, mas um ser que tem o poder absoluto nas mãos e que é acionado por impulsos demoníacos, a coisa é muito pior, pois, com o passar do tempo, ele recusa até mesmo a verdade que outrora reconhecia. O mesmo aconteceu com Hitler"
Aqui existe uma dose de incompreensão. Para o profissional, todos os que carecem de formação ortodoxa são amadores. O inato é inaceitável e não se pode confiar nas suas intuições. Se Hitler tivesse alcançado um comando na Primeira Guerra Mundial, ele por assim dizer seria elegível para consideração na hierarquia militar; se tal comando tivesse tido algum destaque, ele teria sido aceitável. Portanto, as arengas de Hitler sobre a Maçonaria do exército não eram de todo injustificadas. Até o início da segunda guerra, a atividade militar, na Alemanha como na Inglaterra, sempre sofreu dos efeitos da estrutura de classe – um efeito de alguns modos bom e, de outros, desastroso – mas inextirpável. Os soldados, disse Hitler a Goebbels, certa feita, aprendem sete princípios da guerra como credo. Eles têm certeza de que, enquanto se mantiver em mente o objetivo, insistir na ação ofensiva, surpreender o inimigo, economizar suas forças, tomar boas medidas de segurança, cooperar com as formações em seus flancos e concentrar-se na conquista, não podem perder. Eles se esquecem de que o inimigo conhece a mesma fórmula. Esquecem-se que metade das batalhas pode ser vencida antes de se disparar um só tiro. Esquecem-se do valor da arma política.
Mas, quando da queda da França, Hitler já extraíra todas as vantagens possíveis da arma política. Pelo truque, propaganda e diplomacia, ele garantira seus seguidores e aliados. Mussolini, juntando sua bamboleante máquina bélica, aliara-se ao seu companheiro de fascismo a 10 de junho de 1940. A nação alemã o apoiava – já que a Gestapo, o campo de concentração e o pelotão de fuzilamento esperavam os que hesitassem ou se afastassem do aprisco ideológico onde Hitler era o guia. Ele não tinha nada mais a ganhar com o hipnotismo da sua presença em reuniões como os comícios-monstros de Nuremberg. A argúcia do político precisava ser temperada com a disciplina do soldado; mas esta não era uma qualidade que se poderia extrair com facilidade de um homem da índole de Hitler.
Portanto, surge naturalmente a pergunta sobre sua capacidade como líder militar. Era a sua intuição, a sua percepção psicológica das reações dos seu adversários uma vantagem valiosa? Seu generais, levados ao des-vario pela sua interferência – a menos que não passassem virtualmente de repelentes assistentes pessoais cheios de sabujice, como Jodl e Keitel – não lhe teriam dado muito valor. Para os generais, as duras realidades das manobras militares eram muito mais importantes do que qualquer ava-liação do caráter dos seus adversários. Para os militares, esta era uma or-dem sensata de prioridades. Contudo, não se seguia que fosse, ipso facto, a ordem certa. Usado de maneira sensata o dom da intuição é de imenso valor para suplementar, senão para instigar, um curso de ação. Mas uma séria falha estava na incapacidade de Hitler de subjugar a intuição ao bom senso dos ditames da ciência militar. Era um falha que teria efeitos fatais sobre sua liderança.
O estrategista em declínio
O Espaço Vital da Alemanha está a Leste. Só será conquistado pela guerra. - Hitler
Antes de acompanharmos a trajetória do Generalato de Hitler, do zêni-te ao nadir, é imperioso que façamos um resumo e uma avaliação das suas realizações até aqui.
Naturalmente, seu primeiro passo para a conquista do poder militar foi a obtenção da suserania teórica de todas as forças armadas, ao mesmo tempo que assumia cumulativamente os cargos de Presidente e Chanceler, em agosto de 1934, quando da morte de Hindenburg. (O cargo de Comandante-Supremo era inseparável do de Chefe de Estado, na Ale-manha o cargo presidencial.) Mas ele verificou que também recebera uma casa de maribondos de forças disruptivas. Hitler estava ciente do espírito reacionário do Corpo de Oficiais; vira muitos indícios de soturna objeção à sua atitude para com a Igreja, à rapidez com que insistia no rearma-mento e no serviço militar obrigatório, aos movimentos perigosos como a reocupação da Renânia e à infiltração dos métodos policiais de Himmler nas caras e cavalheirescas tradições do Corpo. Mas havia outros pontos irritantes que, segundo Hitler percebeu rapidamente, lhe seriam igualmente incômodos e dos quais astutamente tirou partido tão logo se apresentaram as oportunidades.
Em particular, os assuntos pessoais do Feldmarechal Werner von Blomberg, Ministro da Guerra e Comandante-Chefe de todas as Forças Armadas, e do Coronel-General Werner von Fritsch, Comandante-Chefe do Exército, transformam-se no Abre-te Sésamo no caminho do Führer pelo labirinto do poder.
Blomberg era um homem fraco, que só alcançara elevado posto no exército porque fazia subornos e se ajoelhava na direção certa, no mo-mento certo. Não tinha nenhuma habilidade militar especial; insinuara-se no favor do Presidente Hindenburg e fora nomeado Ministro da Guerra como condição para a nomeação de Hitler como Chanceler em 1933. Hitler esperava que ele fosse um tormento constante; mas aconteceu que, pela sua natureza vacilante, Blomberg foi um elo valioso entre o Chan-celer arrivista e o Corpo de Oficiais rigidamente tradicionalista. Em 1933, Hitler, totalmente incerto do seu controle do poder que alcançara princi-palmente por acaso, cultivou astutamente as relações pessoais com Blomberg, o homem que poderia desbastar o ressentimento do exército.
Então, em fins de 1937, Blomberg decidiu casar-se com sua secretária e a seu pedido Hitler foi seu padrinho. Mas Himmler examinara o passado da noiva e a pesquisa se revelara compensadora. Hesdrich, chefe do ser-viço de informações de Himmler, apresentara um dossiê registrando 42 condenações por prostituição contra a srta. Erna Gühn e mais divertido ainda foi o arquivo de fotografias supostamente obscenas para as quais a noiva do Ministro da Guerra posara. Himmler providenciou a divulgação subreptícia dessa interessante informação e também levou-a à consi-deração de Hitler. O Führer, mostrando-se ofendido com a indiscrição de Blomberg e com o seu aparente relacionamento com os fatos escan-dalosos apurados, insistiu para que o Ministro da Guerra se demitisse.
Seu sucessor natural era o Comandante-Chefe do Exército, Fritsch, mas os interesses a longo prazo de Hitler e Himmler exigiam que se inter-rompesse a sucessão automática de generais no Ministério da Guerra. Por-tanto, foi muito conveniente que a Gestapo pudesse apresentar um dossiê ainda mais prejudicial contra Fritsch, que o descrevia como homossexual. A Gestapo também apresentou um anormal que fora subornado ou obri-gado a identificar Fritsch como um antigo cliente. Tudo isso era uma des-lavada mentira (a prova, na verdade, referia-se a um Capitão Frisch, da reserva, como Himmler e a Gestapo bem o sabiam), mas a atmosfera que se criou tirou de Fritsch qualquer chance de provar a falsidade da acu-sação. Foi licenciado e, embora fosse reabilitado por um Tribunal de Honra, jamais foi reintegrado.
Tendo assim eliminado dois obstáculos, Hitler anunciou ao Gabinete, a 4 de fevereiro, que ele próprio seria agora o Comandante-Chefe de todas as Forças Armadas. O Ministério da Guerra era abolido e substituído pelo OKW – o Oberkomando der Wehrmacht, ou Alto Comando de todas as Forças Armadas, tendo o servil General Wilhelm Keitel na sua chefia ad-ministrativa e ao lado direito de Hitler. Brauchitsch seria nomeado Co-mandante-Chefe do Exército e Göring seria um Reichsmarschall e oficial mais graduado de todas as forças armadas; além disso, cerca de doze generais, de cuja lealdade Hitler desconfiava, seriam transferidos para a reserva.
Assim, por meio de acontecimentos que não provocara, Hitler solapou o poder do Corpo de Oficiais e, da mesma forma, garantiu-se a direção real e titular de todas as forças armadas. O Chefe de Estado, agindo cau-telosamente, fortalecera seu poder de ditador com os de general. Esta foi a sua mais valiosa realização porque, sem ela, nenhuma das subbseqüentes poderia ter sido tentada e muito menos posta em prática.
No outono do mesmo ano, 1938, seguiu-se a tomada da região dos Sudetos, na Tchecoslováquia, moralmente ajudada pelos Aliados, o que talvez a transformasse numa realização de segunda categoria. Um ano depois, o brilhante golpe político de neutralização da União Soviética, pelo pacto Ribbentrop-Molotov, que manteve os russos em xeque enquanto se dominava a Polônia, numa campanha em que, pela última vez, as generais de Hitler tiveram a liberdade de fazer seus próprios planos. A experiência política de uma guerra localizada na Polônia fracas-sou com a entrada da França e da Grã-Bretanha no conflito, mas a expe-riência militar de não-interferência na estratégia dos profissionais fora bem sucedida demais para a megalomania crescente de Hitler, e fê-lo de-terminar que ele próprio planejaria e dirigiria campanhas futuras. Foi um erro grave.
Mas a Noruega ocultou seus efeitos temporariamente, e quando aquela campanha, sutilmente planejada e realizada por tão baixo custo, foi segui-da pela queda da França, da Bélgica e dos Países-Baixos e pelo colapso de Dunquerque, era evidente – pelo menos para ele – que as suas declara-ções de ser ele um salvador enviado pela Providência era a pura verdade. O efeito da sífilis sobre um cérebro já afetado pela megalomania, disse o venereologista Anwyl-Davies, é sempre o de aumentar a confiança de que toda sorte de oposição pode ser superada, a de ver o caminho à frente iluminado por triunfos messiânicos, quando de fato os desastres ruinosos espreitam nas sombras.
Para Hitler, sua próxima etapa estava clara. Ele não subestimava a característica resistência dos ingleses; tampouco supôs que seu inimigo se submeteria facilmente à humilhação de Dunquerque. Eles se voltarão e morderão como terriers, disse Hitler a Brauchitsch. Este lembrou-lhe rispidamente que as forças blindadas de Rundstedt, que recebera ordens de isolar e destruir as forças britânicas que se dirigiam para Dunquerque, haviam sido impedidas, por ordem de último instante do próprio Hitler, de completar sua tarefa. Furiosamente, Hitler desafiou Brauchitsch a duvidar da sensatez da sua ordem. Em meio à tempestade de impropérios Brau-chitsch compreendeu que Hitler tencionava deliberadamente deixar o britânicos escapar de Dunquerque para – não os exasperando – melhorar as possibilidades de um pedido de paz. Para começar, esta pode ter sido a vaga intenção de Hitler; mas o fato é que o próprio Rundstedt lhe fizera sentir a necessidade de poupar as forças blindadas para outras operações e deteve o movimento de cerco com a concordância do Führer. Portanto, Hitler estava certo, ao esperar que o inimigo se voltasse e mordesse como terriers.
Ao mesmo tempo, Hitler estava meio convicto de que poderia haver uma aproximação de paz, pois a 21 de maio, quando a retirada contínua das forças britânicas tornava virtualmente certo seu recuo para o mar (ou seu aniquilamento nas tenazes de Rundstedt), Hitler avisara ao Almirante Raeder que o plano da marinha para a invasão da Grã-Bretanha era excepcionalmente difícil e, de qualquer modo, devia ser posto de lado enquanto ele considerava questões mais urgentes. Não se pode estabe-lecer se essas questões mais urgentes eram autocensuras por permitir a fuga de Dunquerque ou se eram pausas nas quais esperava aberturas para a paz. Quanto ao plano de invasão da Grã-Bretanha, a Operação Leão Ma-rinho, sobre o qual nada se discutiu em nenhuma das conferências de pla-nejamento do Führer até então, era um esboço rotineiro, preparado assim que a Grã-Bretanha declarou guerra à Alemanha e que desde então repou-sava inalterado no Almirantado alemão. Não passava de um embrião e não levara em conta outra possibilidade além de um bombardeio direto da costa sul da Inglaterra pela frota e o transporte de tropas através do Canal da Mancha pelo seu ponto mais estreito. A indagação que Raeder fez a 21 de maio era apenas para saber se Hitler queria que se desenvolvesse o plano em maiores detalhes. Um mês depois, como não aparecesse ne-nhuma bandeira branca nos baluartes de uma Grã-Bretanha crescen-temente fortificada, Raeder tornou a insistir na questão e novamente Hitler mostrou-se cético. Mas, interiormente, estava certo de que a próxima etapa devia ser o preparativo da invasão. (Sem dúvida o seu ceticismo disfarçava a relutância, normal em Hitler, em considerar práticas as idéias de qualquer outra pessoa.) Sua mudança de ânimo foi confirmada por duas diretivas, a primeira emitida a 2 de julho:
O Führer decidiu que sob certas condições – sendo a mais importante a de que a Luftwaffe deve alcançar a superioridade aérea – poderá ocorrer uma invasão da Inglaterra.
A segunda, datada de 16 de julho, dizia:
Corno a Inglaterra, apesar da sua desesperada posição militar, não mostra sinais de querer entrar em acordo, decidi preparar um plano para invadi-la e, se necessário, levá-lo a cabo. Os preparativos para este plano devem estar prontos em meados de agosto.
Numa conferência realizada cinco dias depois, Hitler disse aos chefes do exército, marinha e aeronáutica que havia a possibilidade de uma mudança nas relações políticas com a Rússia. (Como seus chefes das forças armadas já sabiam das suas intenções para com aquele país, que nunca haviam mudado, este comentário foi um tanto redundante. É provável que ele se referisse às relações superficialmente boas que ainda existiam com a Rússia e subentendia que sua verdadeira intenção não demoraria a tornar-se manifesta pela invasão no Leste. Esta coincidiria com a decisão estratégica de lidar com a Grã-Bretanha em primeiro lugar e, assim, assegurar sua capacidade de concentrar todas as suas forças na frente russa.) Devido à possibilidade de mudança política, a invasão da Grã-Bretanha seria considerada como a maneira mais eficaz de terminar primeiro a guerra no Ocidente.
Mas, embora a distância seja curta, disse ele aos chefes das forças armadas – que dificilmente se surpreenderian com a informação – trata-se da travessia de um mar dominado pelo inimigo. Não é uma travessia de sentido único, tal como na Noruega; não se pode esperar surpresa na operação; um inimigo defensivamente preparado e totalmente decidido nos enfrenta e domina a área marítima que devemos usar. Para o exército serão necessárias 40 divisões. A parte mais difícil será a dos reforços e dos suprimentos. Não podemos contar com a disponibilidade de quaisquer suprimentos para nós na Inglaterra. Tampouco podemos dar-nos ao luxo de coisa alguma abaixo do total domínio dos ares. E este deve ser ligado a um completo conhecimento das condições atmosféricas. A época do ano é o fator mais importante, pois o tempo no Mar do Norte e no Canal em fins de setembro é mau e os nevoeiros começam em meados de outubro. Portanto, a invasão principal deve ser completada até 15 de setembro.
Os generais haviam aprendido a controlar-se quando o Führer enrai-vecidamente lhes explicava coisas sabidas de cor, coisas óbvias para eles, coisas que sabiam por dever de ofício. De igual modo, hesitaram em dizer-lhe, quando chegou o momento, que se ele quisesse que sua Luftwaffe alcançasse o domínio dos ares, por enquanto não havia possibilidade de obtê-lo na Batalha da Grã-Bretanha que se travava no mo-mento nos céus ingleses com perspectivas sombrias.
Aquela tentativa de domínio começara, a todo vapor, a 10 de julho, e seis semanas depois ainda não haviam atingido seu objetivo que, militarmente falando, era criar total confusão em Londres e cortar todas as comunicações com a ameaçada costa sul inglesa, para que as forças in-vasoras pudessem desembarcar em condições tão caóticas para os defen-sores que estes teriam pouca chance de sobreviver. Longe de alcançar o domínio dos ares, a Luftwaffe de Göring estava, na realidade, sofrendo baixas desastrosas: com o correr do mês de agosto, e com o Estado-Maior Naval de Raeder dando mostras de inquietação por ser incapaz de prosse-guir na sua tarefa de lançamento de minas protetoras no Canal sem a cobertura aérea que lhe fora prometida, a cooperação vital entre as três armas reduziu-se. Ao mesmo tempo, aumentaram as dúvidas sobre o tempo no Canal, bem como sobre a derrota da Real Força Aérea. Em suma, Hitler cometera um erro tático ao permitir que Rundstedt deixasse os ingleses escapar de Dunquerque, na esperança de obter uma paz que não viria, e seus generais haviam calculado tão mal e embaralhado tanto a invasão de seguimento, que nenhum remendo poderia agora transformá-la em sucesso. O axioma da guerra de que sempre se deve robustecer o sucesso, nunca o fracasso, revelara-se verdadeiro.
Em meados de setembro, o plano Leão Marinho fora reduzido a uma ameaça para salvar as aparências, como o mostra o relatório de Raeder:
A atual situação aérea não oferece condições para se levar a operação avante.
Se a “Leão Marinho” fracassar, representará um ganho de prestígio para os ingleses.
Todavia, ainda não se deve cancelá-la, pois deve-se manter a ansiedade dos ingleses; se o cancelamento se tornasse conhecido, isso seria um grande alívio para os ingleses... (cujas) principais unidades da sua frota estão de prontidão para repelir o desembarque.
A operação continuou sendo uma vaga ameaça até fevereiro de 1942, quando suas poeirentas pastas foram arquivadas. Contudo ninguém, dos dois lados, acreditava seriamente nela depois de outubro de 1940. Já então a Batalha da Grã-Bretanha mostrara ser um ruinoso fracassso para a Luftwaffe de Göring, e a frase mais citada na Grã-Bretanha foi a Chur-chill, de elogio ao punhado de pilotos de caça que salvaram a situação: Nunca, no campo do conflito humano, tantos deveram tanto a tão poucos.
Tendo a Grã-Bretanha repelido com êxito os esforços da Luftwaffe de reduzir a capital ao caos e o resto do país à submissão, e tendo a Leão Marinho fracassado, Hitler não perdeu tempo em fazer novos planos. Ele falou a respeito aos seus generais, numa conferência que, segundo Halder registra, foi notável pela sua calma.
Nossos esforços devem agora concentrar-se na eliminação de todos os fatores que permitam à Grã-Bretanha ter esperanças de uma mudança na situação. A esperança da Grã-Bretanha está na Rússia e talvez, até certo ponto, nos Estados Unidos. Assim, se a Rússia sair do quadro, a Grã-Bretanha também perderá os Estados Unidos, porque a eliminação da Rússia aumentaria grandemente o poderio do Japão no Extremo O-riente. Por conseguinte, nosso próximo objetivo deve ser a destruição da Rússia, e quanto mais cedo ela for esmagada, melhor. O ataque só alcan-çará sua meta se a Rússia puder ser arrasada de um só golpe. Se começarmos em maio próximo (1941), teremos cinco meses para completar a tarefa."
Ao mesmo tempo, Hitler não permitia que nenhum outro aspecto da guerra, político ou militar, escapasse aos seus desígnios. Conferenciou com o General Franco sobre a possibilidade de a Espanha entrar na guerra do lado da Alemanha em troca de Gibraltar, Marrocos e Argélia com-quistados pelo Eixo; conseguiu que Mussolini concordasse em não se meter nos Balcãs em troca do direito exclusivo de operações na esfera do Mediterrâneo; e cooperou secretamente com Pètain, que ainda estava à frente do derrotado governo francês na nova capital, Vichy, e que foi venenosamente influenciado por Pierre Laval, para defender as colônias da África do Norte com o que restava da marinha francesa, contra a inter-venção naval britânica. (A França seria recompensada com possessões coloniais após uma divisão do derrotado Império Britânico.)
Hitler baseava esses planos em raciocínio psicológico sólido. Desde a campanha finlandesa, continuava achando que a Rússia não teria chance alguma contra o poderio organizado do Reich. Desprezava Mussolini pela sua inveja e pelo seu medo de cair do carrossel do Eixo. Desprezava Franco por sua atitude fria. Hitler confidenciou a Jodl que o Duce está agindo na África exatamente como eu esperava (mal); e suas tropas também. Temos a melhor parte do negócio deixando-o esgotar-se lá em-quanto nos preocupamos com os suprimentos de petróleo romeno.
O Duce, vivendo da glória da sua conquista da Abissínia, em 1936, e da sua noção insana de criar um novo Império Romano, começara sua campanha na África em outubro de 1940, com o sucesso espalha-fatosamente divulgado da expulsão da força de defesa britânica, de 2.000 homens, da Somália. Para fazer isso, ele envidou todos os esforços e lançou na batalha 25.000 dos 500.000 homens que concentrara na Líbia, na Abissínia e na Somália. Completado esse triunfo ele e seu Comandante-Chefe, o Marechal Graziani, ficaram alegremente a trocar elogios enquanto a Marinha Real Britânica trazia silenciosamete um imenso comboio transportando reforços para o Egito. Com esses reforços, o co-mandante da campanha, General Wavell, alcançou suas grandes vitórias em Sidi Barrani e Tobruk e, em meados de janeiro, derrrotou humilhantemente as forças italianas, capturando 150.000 homens.
Ao mesmo tempo que iniciava a campanha africana, Mussolini não conseguiu deixar de interferir nos Balcãs e invadiu a Grécia através da Albânia. Também lá, as vitoriosas tropas italianas, como as chamava o Duce, foram forçadas a ignominiosa debandada, numa semana.
Todavia, embora Hitler pudesse estar satisfeito com o fato de seu des-prezível aliado se revelar tão desmiolado e desanimado, era obrigado a ajudá-lo para garantir as finalidades políticas alemães e, em março de 1941, um dos seus mais experientes generais na guerra blindada, Erwin Rommel, atacou e obrigou Wavell, com blindados inferiores e linhas de comunicação demasiado estendidas, a recuar para o Egito. Raeder escre-veu em seu diário: O Führer é de opinião de que é vital para o resultado da guerra que a Itália não sucumba... Isso significaria grande perda de prestígio para as potências do Eixo.
Também nos Balcãs, Hitler teve de ajudar o Duce. Como a Grécia não se deixara conquistar pelos italianos, ele despachou cerca de 20 divisões, no começo de abril de 1941, com o objetivo de invadir a Grécia, as quais primeiro esmagaram a Iugoslávia, que poderia ameaçar seu flanco. Sua aliança com Mussolini estava-se revelando demasiado dispendiosa em termos de tropas. E ele tinha razão em suas amargas queixas contra amigos ingratos e indignos de confiança.
Quanto à Romênia, Hitler fizera seus primeiros movimentos abertos naquela direção em setembro de 1940, enviando missões militares cuja tarefa seria dar à amistosa Romênia orientação para organizar e instruir suas forças. Elas terão outra tarefa que deve permanecer secreta para o mundo, os romenos e nossas próprias tropas. A de preparar o deslocamento de forças alemães, partindo de bases romenas, no caso de sermos forçados a uma guerra contra a Rússia Soviética e para proteger a região petrolífera romena.
A inescrutável restrição no caso de sermos forçados é um tanto cômica, em vista das declaradas ambições de Hitler no Leste quanto ao Espaço Vital; mas não teria surpreendido os russos, que já suspeitavam bastante das intenções alemães na Romênia – e, aliás, em outras partes. Não houvera dificuldades na partilha da Polônia em 1939; mas com a Rússia e a Alemanha tentando trairem-se mutuamente, cada uma delas atendo-se aos suprimentos de petróleo romeno para futuras intenções, houve considerável ressentimento em Moscou quando Hitler mandou que oito divisões blindadas ficassem de prontidão para tomar os campos pe-trolíferos. Era um alarma falso; mas seu efeito não foi aliviado pela che-gada ao Kremlin de um telegrama, Altamente Secreto, anunciando que uma aliança militar entre Alemanha, Itália e Japão seria assinada a 27 de setembro de 1940.
A aliança, dizia o telegrama de Berlim, visa exclusivamente a com-bater os norte-americanos fomentadores de guerra. Isto não está expressamente formulado nos termos do tratado, mas pode ser inequivo-camente inferido dos mesmos. Sua finalidade exclusiva é fazer com que os elementos que insistem para que os Estados Unidos entrem na guerra caiam em si, dando-lhes convincentemente que, se entrarem na luta, terão automaticamente como adversários três grandes potências.
Essa carta confortadora foi seguida da visita de um dos auxiliares de Stalin, Molotov, a Berlim. Numa das conferências realizadas na embai-xada russa, ele recebeu a garantia de que, independente da intervenção norte-americana, nenhum anglo-saxão jamais tornará a por os pés no continente europeu, pois a Inglaterra está batida, sendo apenas uma questão de tempo o reconhecimento por parte dela da derrota. Foi um tanto desagradável que a reunião tivesse de ser adiada, devido a um alar-ma de ataque aéreo, e Molotov perguntou friamente: Se a Grã-Bretanha está derrotada, por que estamos num abrigo antiaéreo, com bombas inglesas caindo?
Esse sarcasmo e as dúvidas e suspeitas, agora óbvias, da Rússia tive-ram apenas o efeito de provocar uma das fúrias incontroláveis que Hitler tinha nas suas conferências diárias. Se Hanish, Loffner e Neumann, os companheiros dos seus primeiros tempos em Viena, estivessem presentes, teriam reconhecido a versão muitíssimo ampliada da característica que tão bem conheciam. Suas queixas, petulantes e monótonas, sobre as injustiças e ineficiências do sistema haviam-se transformado numa psicose que e-xigia que tudo fosse moldado à sua vontade. Seus rompantes eram apenas exteriorizações da ira contra seus chefes de exército que se atreviam a contraditá-lo, contra seus supostos aliados, que o deixavam frustrado a cada tentativa de participação contra um inimigo que era mais resistente do que ele esperava.
Apesar das demonstrações de insanidade, Hitler ainda não tinha dificuldades em elaborar as mais complicadas manobras militares. Mas havia uma fraqueza em suas reações psicológicas, que consistia em desviar-se de dificuldades circunstanciais que influenciavam suas avaliações in-tuitivas. Por exemplo, a hesitação de Franco em unir-se ao Eixo, porque vira, com certa consternação, que o exército de Graziani fora derrotado, que o HMS Illustrious navegara desimpedido pelo Mediterrâneo até o Egito e que Gênova estava sendo bombardeada por belonaves inglesas. Mas, embora pudesse desviar-se de dificuldades incômodas, Hitler pelo menos ainda podia fazer suas próprias avaliações e acreditar inabala-velmente em sua exatidão. (Naturalmente, essa crença é inseparável da megalomania.) Por essa época, Halder registra que o Führer afirma estar sempre certo e à menor sugestão em contrário ele aponta para a Tchecoslováquia, Polônia, Noruega e Cirenaica – berrando contra a incompetência de nós, soldados, e abrigando-se atrás das ilusões do seu egoísmo.
Se precisarmos de provas da sua habilidade estratégica, não existe melhor exemplo nessa época do que sua famosa Diretiva n° 21 esboçando a operação Barbarossa, seu plano para a conquista da Rússia – no qual, disse ele a Jodl, temos apenas de dar um pontapé na porta e toda a estrutura podre virá abaixo.
Em suas seis páginas – só nove cópias foram impressas – a diretiva declarava, em primeiro lugar, que:
As Forças Armadas Alemães devem estar preparadas para esmagar a Rússia Soviética numa campanha rápida antes do final da guerra contra a Inglaterra... Os preparativos devem estar terminados a 15 de maio de 1941... O grosso do exército russo na Rússia Ocidental deve ser destruido em operações audazes, mediante o avanço de profundas cunhas blindadas, e deve-se evitar a retirada de topas intactas e prontas para a batalha. O objetivo fundamental é o estabelecimento de uma linha de defesa contra a Rússia Asiática que vá do Rio Volga até Arcangel.
Tendo formulado o objetivo, ele passava a explicar como os ataques deviam ser lançados no Norte, partindo da Finlândia, e no Sul, da Romê-nia. A linha divisória entre os dois ataques seriam os Pântanos de Pripet. Um grupo de exércitos se apoderaria dos países bálticos e Leningrado e o outro atravessaria a Rússia Branca, ligando-se àquele e envolvendo as forças russas em retirada do Báltico. Ao sul dos pântanos, um terceiro grupo de exércitos avançaria pela Ucrânia até Kiev. Seu flanco seria protegido por tropas romenas e alemães e que se dirigiriam para Odessa e o Mar Negro e tomariam a concentração industrial na bacia do Donets.
Era tudo muito hábil e prático. Você precisa apenas elaborar os detalhes, disse ele a Halder, e isso deve estar pronto até o fim do mês próximo (janeiro de 1941). É vital que não haja atraso algum. Enfrentaremos grandes distâncias, na Rússia, e o inverno russo é também um fator decisivo. A vitória deve ser completada antes que tenhamos que combater as inclemências do tempo. Todos os meus planos são determinados por esse fator.
Talvez tenham sido. Ele não se esquecera de que Carlos XII e Napoleão haviam sido derrotados pelo Inverno, adversário cruel. Mas fa-almente deixara de levar em conta outro fator: sua irrepreensível malignidade para com os que o frustravam.
As missões militares na Romênia, das quais os russos justificadamente desconfiavam, já que a Romênia faz fronteira com a Ucrânia ao longo de cerca de 640 quilômetros a Oeste do Mar Negro, em fins de fevereiro de 1941 haviam-se transformado numa força de quase 250 mil homens. A Bulgária, que fazia fronteira com a Romênia, também fora engodada, caindo nas mãos de Hitler com a promessa de acesso ao Mar Egeu através de uma Grécia controlada pelo Eixo. O quid pro quo seria a ocupação da Bulgária por tropas alemães e a conseqüente negativa por parte desta de ceder aos ingleses uma base de onde pudessem bombardear os campos petrolíferos romenos.
Contudo, o controle total dos Balcãs não seria obtido sem a coo-peração da Iugoslávia, e a 25 de março o Príncipe Paulo, regente do rei Pedro II, que tinha 18 anos de idade, dirigiu-se pressurosa e secretamente a Viena, com seu Primeiro-Ministro e com o Ministro das Relações Ex-teriores, como se fossem obsequiosos cachorrinhos respondendo ao es-talar dos dedos do Führer. Sem discutir, eles cederam à sua exigência para que permitisse o trânsito de tropas e material bélico alemães pela Iugoslávia, e essas tropas respeitariam sempre a soberania e a integridade territorial da Iugoslávia. Eles foram informados de que seu prêmio seria o porto grego de Salônica assim que eu tiver decidido a questão grega.
Infelizmente para Hitler, o povo iugoslavo não estava tão ansioso por vender seu país. Enquanto Paulo estava em Viena, o povo preparou-se pa-ra derrubor a Regência e elevar o jovem Rei Pedro ao trono. Paulo voltou, encontramdo um levante em preparo. O pacto que ele e seus ministros tão obsequiosamente assinaram foi destruído. O embaixador alemão, cru-zando as ruas de Belgrado de carro, foi atacado por uma multidão que celebrava a derrubada do odioso regime dos títeres de Hitler.
Foi esse insulto, mais do que a falência do seu golpe tão ardilosamente organizado, que enfureceu Hitler. Nova operação militar foi organizada. Ela foi chamada "Operação Punição", e foi planejada durante e imedia-tamente após uma reunião na Chancelaria, a 27 de março de 1941.
A Iugoslávia deve ser esmagada sem piedade, ordenava Hitler. Repetiam-se as cenas que demonstravam o estado de revolta que Wei-zäcker registrara em 1939, só que mais violentas. (Os descontroles cada vez mais freqüentes e a violência irrestrita eram sintomas típicos do pro-gresso da sífilis.) Não se fará nenhuma indagação diplomática e nem se apresentará qualquer ultimato. A Iugoslávia será destruída impiedosamente.
Nesse estágio, Halder lembrou-o de que ele ordenara o início da ope-ração Barbarossa para meados de maio – dali a seis semanas apenas – e que uma tarefa adicional para o exército daquele porte, envolvendo a des-truição de uma nação, inevitavelmente atrasaria a execução do plano.
Só se eu der ordem para atrasá-lo, foi o que Hitler lhe disse.
Ele ainda tremia de ódio. O Estado-Maior estava rígido, em silêncio... O médico Morell olhava-o, impotente... Ninguém conseguia ver a possibilidade de desviar forças para esta nova campanha; tampouco ver sentido numa operação que não passava de um golpe vingativo.
Evidentemente não passava disso, mas agora que tinham dado a Hitler uma justificativa, a campanha da Iugoslávia se tornara mais importante que a da Rússia. Passou a constituir-se num desafio à sua capacidade. Como disse Liddell Hart:
O preparativo e a contemplação de grandes planos estratégicos sempre o inebriaram. As dúvidas que os generais apresentavam, quando ele revelava a tendência da sua mente, serviam apenas para torná-la mais definitiva. Não havia ele demonstrado estar certo, sempre que duvi-daram da sua capacidade de vencer? Hitler deve provar novamente aos seus generais que estão errados – e da maneira mais surpreendente. Suas dúvidas mostravam que, apesar de toda a subserviência, no fundo ainda desconfiavam dele como o amador que era.
Na verdade ele não insistiu para que se mantivesse a programação da Barbarossa. Embora, em virtude de sua exaltada egomania, lhe fosse difícil aceitar qualquer conselho, por mais sensato, que partisse dos mili-tares ortodoxos, dificilmente podia deixar de estar cônscio da sua inferio-ridade numérica, na questão de tanques, em comparação com os russos, ou da necessidade de concentrações intensas de forças blindadas nos Balcãs para realizar sua rápida conquista ali. Portanto, a 1º de abril, en-quanto o Estado-Maior elaborava os detalhes da campanha da Iugoslávia, ele ordenou um adiamento do início da Barbarossa, de meados de maio para meados de junho.
Assim, a 6 de abril desfechou-se a Operação Punição. Belgrado foi destruída pelas bombas de sucessivas ondas de bombardeiros de Göring. Só naquele ataque morreram quase 20.000 pessoas e, como o país esti-vesse totalmente despreparado, rendeu-se em dez dias.
Ao mesmo tempo, as tropas alemães que haviam sido reunidas na Bulgária atravessaram a fronteira, penetrando na Grécia, onde Mussolini enfrentara uma heróica resistência que repetidamente pusera suas tropas em fuga. Os gregos haviam sido reforçados por divisões inglesas em mar-ço, mas também estas foram vencidas pelas mesmas forças que Hitler lançara sobre os Balcãs, (28 divisões, incluindo 24 que haviam sido desviadas da área de reunião para a operação Barbarossa", na Polônia.) Apenas uma semana depois que a Iugoslávia fora obrigada a capitular, a Grécia também foi conquistada; e, em fins abril, Hitler podia escarnecer dos generais, com suas apreensões, apontar triunfalmente para duas nações inteiras dominadas numa campanha de um mês para a qual ninguém estava disposto.
Nada poderia exaltar mais a sua intensa megalomania.
Esfregando euforicamente as mãos, com a alegria do general para quem mundo algum é grande demais para conquistar, nenhuma campanha é complexa demais, ele ordenou o início da Barbarossa, que tivera seu momento novamente escolhido. A ofensiva devia começar às 03:30 h de 22 de junho, e a palavra-código para incendiar a Rússia e fazer o mundo perder a respiração era Dortmund [23].
Precisamente na hora marcada, anunciou-se a palavra-código e os três grupos de exército iniciaram a operação Barbarossa. Duas horas depois, o embaixador alemão em Moscou visitou Molotov e lhe informou que a A-lemanha decidira atacar a Rússia porque um excesso de tropas do Exército Vermelho estava em evidência ao longo da fronteira e ameaçava a Alemanha, desafiando o Pacto de 22 de agosto de 1939. Na Alemanha, às sete horas, Goebbels irradiou a proclamação do Führer:
Prostrado por preocupações sérias, condenado a meses de silêncio, posso por fim falar livremente. Povo alemão! Neste momento está oco-rrendo uma marcha que, pela sua amplitude, é comparável à maior que o mundo já viu. Hoje decidi novamente colocar o destino do Reich e do nosso povo nas mãos dos nossos soldados. Que Deus nos ajude, especialmente nesta luta.
No mesmo dia, Churchill respondeu a essa repugnante insolência fa-risaica numa irradiação que se desviou das difíceis arestas de uma política que até então tratara a Rússia como se ela estivesse muito ligada a Hitler e, portanto, igualmente intolerável. Essa irradiação também teve seus momentos repugnantes:
O passado, com seus crimes, suas loucuras e suas tragédias, desapa-rece num lampejo. Vejo os soldados russos nos umbrais da sua terra na-tal, defendendo os campos que seus pais araram desde tempos imemo-riais. Vejo-os defedendo os lares enquanto suas mulheres oram – sim, pois há momentos em que todos oramos – pela segurança dos entes queridos, pelo retorno do arrimo da familia, do seu defensor, do seu pro-tetor. Vejo as dezenas de milhares de aldeias russas onde ainda existem as primevas alegrias humanas, onde as donzelas riem e as crianças brincam.
Essa visão cor-de-rosa, embora emocionalmente de acordo com o mo-mento, estava longe de ser exata, como acontecia com a maioria dos dis-cursos de Churchill. Não havia soldados russos defendendo os umbrais dos seus campos arados e nem mulheres e mães em oração. Os guardas da fronteira, despertados pelo estardalhaço das lagartas dos tanques, foram fuzilados ao saírem das suas casernas, correndo seminus por entre a fumaça, diz Alan Clark em seu livro Barbarossa. Os aviões foram destruídos nos aeródromos, como na Polônia. Não havia, virtualmente, nenhuma resistência organizada contra o tremendo impacto da invasão inicial. Durante dias os alemães penetraram na Rússia quase que sem opo-sição. Era volumosa a força defensiva, mas sem nenhum plano. Batalhas heróicas foram reduzidas a simples escaramuças, por falta de orientação. Passado um mês, os exércitos de Hitler percorreram 480 quilômetros de toda a frente de 1.600 quilômetros de extensão, desde a Finlândia até o Mar Negro.
A 3 de outubro, o próprio Hitler transmitiu o seguinte: Hoje eu declaro – e declaro-o sem reservas – que o inimigo no Leste foi derru-bado e nuca mais se erguerá.
Uma característica sua era, tão loco surgiam falhas na estrutura das suas empresas, a afirmação de que os acontecimentos (inesperados) eram esperados.
A primeira falha começou a aparecer em agosto. As relações entre Hitler e os generais eram muito frágeis. O problema, como sempre, era de estratégia – os generais atendo-se ao ortodoxo, e Hitler, ao que concebia como audaz e definitivo.
Em linhas gerais, Hitler determinaa: no Norte, desimpedir os Estados Bálticos e capturar Leningrado, com a ajuda do Grupo de Exércitos do Centro; no Sul abrir caminho para Kiev e o Dnieper e tomar as grandes fontes de recursos da Ucrânia.
Os generais, perturbados pelo súbito endurecimento da resistência do Exército Vermelho e pela estreiteza da linha alemã resultante do seu excessivo comprimento, tinham idéias diferentes. Subestimamos a Rússia, informou Halder a 17 de agosto. Contávamos com 200 divisões e já identificamos 360. Não temos profundidade na nossa linha ofensiva e, em conseqüência, o inimigo muitas vezes contra-ataca com êxito.
Ele e Brauchitsch insistiram num ataque concentrado a Moscou. Mas Hitler não queria saber disso. Ele rejeitou o plano de Moscou, escreveu Halder em seu diário e decidiu que o grosso das forças dos Grupos de E-xércitos do Centro e do Sul se concentrasse para um grande movimento de pinças contra as forças soviéticas a leste de Kiev. A meta de se derro-tar decisivamente os exércitos russos diante de Moscou fora subordinada ao desejo de conquistar antes a Ucrânia... Mas o Führer também estava obsedado pela idéia de capturar Leningrado e Stalingrado, pois se convencera de que se essas duas cidades sagradas do comunismo caíssem, a Rússia sucumbiria. [24]
O movimento de pinças de Kiev só se completaria a 20 de setembro. Tornava-se cada vez mais claro que a técnica da Blitzkrieg, que fun-cionara tão bem no Ocidente, perdia rapidamente impulso nas vastas este-pes da Rússia e minava as forças alemães em linhas de terreno muito longas. Mas Hitler, embriagado com o falso poder da autopersuasão, afir-mava, numa cena de triunfo demoníaco, que suas forças haviam vencido a maior batalha da história do mundo. Halder observou secamente que era de opinião ser ele o maior erro da campanha oriental, pois nas seis semanas entre a queda de Smolensk e a tomada de Kiev perdera-se a oportunidade de tomar Moscou.
Sendo este o momento da história bélica de Hitler em que começava claramente a delinear-se a descida do Louco da crista do poder para as profundezas da ignomínia, vejamos retrospectivamente os passos que mais depressa o levaram a este ponto.
A primeira, e mais desastrosa, foi a insana determinação de esmagar impiedosamente a Iugoslávia e, dessa forma adiar o começo da operação Barbarossa em cinco fatídicas semanas. Em sua fúria pela recusa da Iugoslávia em concordar com a vil assinatura do pacto do regente títere, Hitler desviara o curso da ação do caminho estabelecido em sua Diretiva: O inverno russo é... fator decisivo. A vitória deve ser completada antes que sejamos chamados a combater as inclemências do tempo. Todos os meus planos são determinados por esse fator. Isso era sensato. Mas foi idiotice rematada, realizada unicamente por despeito, aumentar cem vezes o risco do encontro com o cruel adversário de Napoleão – o Inverno – depois de já ter reconhecido a necessidade de evitá-lo.
Maior atraso foi causado pelos infrutíferos esforços de Halder e Brau-chitsch e dos comandantes de exército em convencer Hitler a mudar de idéia. Ao todo, desperdiçaram-se dois meses.
Da parte de Hitler, não houvera equívoco quanto a um lado do caráter russo. O russo lutará até a morte em qualquer pedaço de terreno; não abrirá mão dele; vocês devem destruí-lo. Mas quanto à idéia que fazia de sua desorganização, até certo ponto estava fora de lugar. Os russos apren-deram lições na Finlândia. A espantosa rapidez com que, uma vez feito o tremendo avanço na Rússia, os invasores foram contra-atacados era peri-gosamente eficaz numa frente tão ampla; e, embora cerca de meio milhão de russos estivessem enredados nas pinças de Kiev, mais outro suposto meio milhão num movimento subseqüente de cerco em Vyazama, o ter-mendo esforço cansara os alemães no momento exato em que precisavam de novo ímpeto, para atacar através de um terreno transformado em atoleiro pelas primeiras chuvas.
A obsessão de ver Stalingrado e Leningrado caírem custou-lhe grande número de homens e máquinas. Aliás, a malograda batalha pela conquista da cidade Stalingrado durou seis meses – e resultou no completo aniqui-lamendo Sexto Exército Alemão, enquanto que o cerco de Leningrado, durante o qual milhões de habitantes morreram de fome, cansaço e frio, e ainda defenderam sua assediada cidade contra o inimigo durante 900 dias, mostrava outra faceta do caráter russo que Hitler subestimara – a resistência.
Na Campanha Oriental, também seu desprezo pelos seus generais a-tingiu proporções maníacas. Chegou ao absurdo de ele mesmo, Hitler, controlar inteiramente todos os movimentos de formações e até mesmo de pelotões de infantaria. Liddell Hart diz que Rundstedt lhe contou que, no final da guerra, as únicas tropas que eu tinha permissão de movimentar eram os guardas diante do meu próprio quartel.
O ambiente das conferências diárias que ele realizava é confirmado por muitos dos oficiais superiores que prestaram testemunho nos julga-mentos de Nuremberg, após a guerra.
Os relatórios dos comandantes de campanha, recolhidos e sinte-tizados por oficiais graduados, eram-lhe entregues, e ele dirigia o movi-mento desta ou daquela brigada ou batalhão, voltando-se para os mapas de grande escala e muito minunciosos que sempre eram o ponto focal e pictório das conferências. Sua fantástica memória para detalhes muitas vezes fazia com que ele quisesse saber o que acontecera com determinado ninho de metralhadoras, por exemplo. Se seu operador fora morto, por que não fora substituído por outro, 'para matar mais inimigos?' Quando lhe disseram, certa vez, que as 'tropas simplesmente não defendem ter-reno quando a temperatura está a vinte graus abaixo de zero', ele deu or-dens para que o comandante do posto fosse fuzilado imediatamente. Em seus acessos de fúria, era por vezes acometido de dores provocadas por espasmos nervosos, momentos em que se dobrava sobre o estômago. Quando lhe informavam de algum fato indiscutível que o tomasse, mo-mentaneamente de surpresa, sem que pudesse defender-se de seus erros de julgamento, manifestava-se nele uma surdez que, sem dúvida, era proposital.
Cada conferência do meio-dia era um suplício total para o EstadoMaior. O Führer, muitas vezes, ou estava berrando furiosamente, ou derreado numa cadeira, onde se consumia em autocomiseração, na qual todos os revezes eram causados pela deslealdade, fraqueza ou estupidez dos seus aliados. Está claro que também havia longos períodos de lucidez, nos quais sua inteligência como comandante de toda sorte de formações muitas vezes era evidente. O problema era que, na condição de comandante supremo, deveria ter abandonado as preocupações com o movimento das patrulhas; mas não suportava deixar que o controle de coisa alguma lhe saísse das mãos. Convencera-se de que era sobre-humano, e que o grande destino a que servia superaria todos os perigos e tudo teria um final triunfante.
Como sabemos, os finais triunfantes estavam longe da determinação de seu destino; a fuga à tabes dorsalis, que o levava para a paralisia geral do insano, era agora impossível. A tabes dorsalis ou locomotor ataxia, sí-filis que envolve a medula espinal, é caracterizada por paroxismos, desor-dens funcionais do estômago, incoordenação dos movimentos voluntários e perturbações da visão. O aforisma de Lorde Acton poderia ser ironi-camente adaptado para Todo o poder corrompe e o poder sifilítico corrompe absolutamente.
Estas eram então as sementes da derrota de Hitler e da Alemanha. Os generais sempre estiveram apreensivos com a guerra em muitas frentes. África, os Balcãs, o Atlântico, o Mediterrâneo – havia, como observara Westphal, um limite para o potencial humano e para a capacidade produ-tiva de toda nação. Ninguém pode negar a habilidade do Führer em des-fechar e levar a cabo com êxito tanta coisa em tão pouco tempo. (A rapi-dez daquele sucesso se deveu em grande parte ao longo e cuidadoso pre-parativo político durante os anos de 1919 a 1939.) Ninguém poderia ne-gar, tampouco, a sua percepção quase visionária das reações dos inimigos, militares e políticos. Mas certamente ninguém pode negar sua loucura em se recusar, à medida que a campanha russa se arrastava cansativamente, a aceitar quaisquer dos planos estratégicos dos homens que estavam no local, pois eram planos que, na melhor das hipóteses, poderiam terminar em negociação ou acordo. E nada poderia tê-lo induzido a aceitar tal solução. Como Chester Wilmot comenta, em The Struggle for Europe:
Ele sabia que nem seu poder pessoal nem o do Reich nazista sobrevi-veriam a um acordo por negociação. Tendo submetido o futuro do seu re-gime, e o da Alemanha, ao jogo da guerra, ele tinha que prosseguir até o último lanço, na esperança de que os números vencedores aparecessem. Vitória Total ou Derrota Total: esta era a essência da filosofia niilista que era a base do nazismo.
Naturalmente, ataviada, ela se parecia com o toque de clarim do bravo. Era um toque que havia ressoado centenas de vezes:
Atacarei, não capitularei. O destino do Reich depende só de mim. Toda esperança de acordo é inútil. É Vitória ou Derrota. A questão não é o destino de uma Alemanha nacional-socialista, mas de quem dominará a Europa no futuro. Ninguém alcançou o que alcancei. Minha vida não tem importância nisso tudo. Liderei o povo alemão a grandes alturas, mesmo que o mundo agora nos odeie. Estou apostando toda a minha realização num jogo. Tenho de escolher entre a vitoria e a destruição. Escolho a vi-tória. Enquanto viver, pensarei somente na vitória do meu povo. Não me deterei diante de nada e destruirei todos quantos se oponham a mim. Vencerei ou tombarei nessa luta. Jamais sobreviverei à derrota do meu povo. Não haverá capitulação às potências externas, nenhuma revolução pelas forças internas.
Não: ninguém poderia negar qualquer dessas coisas, desses fatos. E muito menos os generais. E talvez muitos deles se lembrassem da frase: Não sobreviverei à derrota do meu povo. Hitler dissera-lhes isto em [25]1939.
O estrategista na derrota
O povo alemão não está à altura do que eu fiz por ele. – Hitler
No mesmo dia em que Hitler exultava com a assinatura do armistício franco-alemão, no vagão na Floresta de Compiègne – 22 de junho de 1940 – os ingleses davam o primeiro passo para recuperar uma posição segura no continente europeu. Era um passo vacilante, mas negava a validade da promessa de Hitler, de que nenhum anglo-saxão jamais tornaria a pôr os pés no continente.
No dia 23, instigados por Churchill, cem comandos, nuns dois barcos – tudo o que se podia obter – atacaram a costa francesa próximo de Bolonha, com o objetivo de trazer prisioneiros e informações sobre as de-fesas costeiras ali existentes. Não tiveram êxito; aliás, alguns deles, dirigindo-se para portos errados na viagem de volta, foram ignominiosamente arrastados para terra pela Real Polícia Militar e presos por deserção.
Foi um começo audaz, ainda que cômico, da imensa operação Overlord que, a 6 de junho de 1944, levou a guerra na Europa às suas der-radeiras batalhas; mas serviu para convencer a Churchill e ao Comando do Exército que, embora a Grã-Bretanha, na época, estivesse indefesa, em termos de homens e armas, nunca se deveria perder de vista a necessidade de uma eventual invasão em grande escala. A convicção determinou Churchill a formar um Comando de Operações Combinadas, cuja tarefa seria estudar e comunicar toda possibilidade de realização desse objetivo.
Era evidente, para quem quer que fosse capaz de fazer um simples cálculo estatístico, que somente a retirada do grosso das forças alemãs do noroeste europeu possibilitaria a invasão. Naquela época, com os homens de Hitler na posse alegre da França e dos Países Baixos, e com os alemães triunfalmente aquartelados na derrotada Paris, a possibilidade de uma reti-rada por qualquer razão era, como disse o Chefe do Estado-Maior Impe-rial Britânico, numa notável atenuação da verdade, algo remota.
E permaneceu remota até precisamente um ano depois e com o come-ço da Barbarossa. A Batalha da Grã-Bretanha e a intensidade cada vez maior da Batalha do Atlântico ocuparam totalmente as atenções da mari-nha e da força aérea, enquanto o exército tentava desesperadamente supe-rar a dizimação sofrida na França, treinando milhares de convocados que estavam sendo gradativamente retirados da vida civil e para os quais pare-cia haver uma escassez permanente de armas e equipamento. Então, com a Rússia traída em junho de 1941 – em parte pela sua própria cobiça e estupidez em se aliar com a Alemanha – o equilíbrio de poder mudou. Aliás, foi uma mudança leve: Hitler ainda mantinha 50 divisões defen-dendo o noroeste europeu e a Noruega. Mas, à medida que a Barbarossa progredia, tornava-se evidente que os contingentes necessários à manu-tenção do impulso das forças invasoras deveriam ser completados com os que estavam na Europa ou na Africa.
Stalin, com chorosa petulância, desairosa num líder de uma grande nação, não deixou de tirar o que considerava serem conclusões óbvias: que a Grã-Bretanha devia criar imediatamente uma segunda frente na Europa e, assim, obrigar a retirada de algumas das 150 divisões alemãs empenhadas na Frente Oriental. Sua correspondência com Churchill nessa época está cheia de acusações, apelos e exigências. Foi o fracasso da Grã-Bretanha na França que permitiu à Alemanha invadir a Ucrânia... Os alemães acham que a Inglaterra está apenas blefando e riem da sua covardia, enquanto transferem divisão após divisão para o Leste, onde o nosso povo derrama muito sangue defendendo a pátria contra o crescente poderio dos nazistas... Só quando a Grã-Bretanha abrir uma Segunda Frente é que teremos certeza da sua amizade... Quando virá a ajuda da Grã-Bretanha? [26].
Com admirável moderação, Churchill, absteve-se de esfregar amargas verdades nos ferimentos russos. Os Estados Unidos, que seu presidente chamava de 'o grande arsenal da democracia', então começara, pela Lei de Empréstimos e Arrendamentos, a fornecer armas e carros blindados, na-vios e munições, à Grã-Bretanha. Muitos desses suprimentos, embora vi-talmente necessários nas batalhas contra Rommel, na África, e para equi-par o exército, em expansão na Grã-Bretanha, estavam sendo desviados para a Rússia, e Churchill afirmava com paciência e dignidade, em suas respostas a Stalin que isso era tudo o que se podia fazer no momento – embora tenha concordado com o Presidente Roosevelt que uma das nossas metas principais seja a ajuda às populações conquistadas, desembarcando exércitos de libertação logo que a oportunidade se apresentar.
Naturalmente, a oportunidade surgiu com o ataque japonês a Pearl arbor, a 7 de dezembro de 1941. Os Estados Unidos passaram, imedia-tamente, de uma neutralidade simpática à causa Aliada para a guerra. Duas semanas depois, Churchill, Roosevelt e George C. Marshall[27] (Presidente dos Chefes de Estado-Maior Conjuntos dos Estados Unidos) reuniram-se em Washington e chegaram a um acordo sobre a orientação estratégica de todas as forças das duas nações, a distribuição de potencial humano e munições, a coordenação das comunicações, o com-trole do serviço militar de informações e a administração conjunta das áreas capturadas. Também se concordou que, apesar da entrada do Japão na guerra, nossa opinião é de que a Alemanha ainda é o principal inimigo, e sua derrota, a chave da vitória. Derrotada a Alemanha, o colapso da Itália e a derrota do Japão serão inevitáveis.
Decisão firme; aliás, seu significado e intenção nunca vacilaram, mas foram algo prejudicados pela vertiginosa rapidez dos acontecimentos no Extremo Oriente. Cingapura caiu ante os invasores japoneses a 15 de fevereiro de 1942, seguindo-se a grave ameaça de que as potências do Eixo pudessem unir-se no Oceano Índico, e, assim, de um golpe, isolar a India, ameaçar a Austrália e deixar a costa oriental da Rússia vulnerável. Para conjurar esse perigo era necessário desviar o principal esforço aliado para deter os japoneses e salvaguardar os campos petrolíferos da Pérsia. Logo, não era possível, pelo menos naquele instante do conflito, pensar na invasão da Europa.
Na verdade, houve muitos outros adiamentos, causados principalmente pelas imensas perdas em navios na Batalha do Atlântico, pelas exigências contínuas que a Rússia fazia de equipamento para as de-sesperadas batalhas travadas mês após mês, e pelo incessante esforço para aumentar as forças necessárias para derrotar Rommel no deserto. Diante de tantos problemas, era extremamente difícil conseguir-se o necessário para garantir o sucesso de uma invasão continental. Todos os Chefes de Estado-Maior concordavam que tentar a invasão com forças inadequadas seria um convite ao desastre. Os reiterados apelos de Stalin acabaram por levar Roosevelt a uma promessa insensata, a de que a abertura da Segun-da Frente na Europa seria levada a cabo na segunda metade de 1942. Churchill, porém, fez restrições à promessa do Presidente americano, numa nota que dizia categoricamente: É impossível dizer antecipadamente se a situação tornará viável esta operação, quando chegar o momento. Logo, não podemos fazer promessas a respeito. Mas o povo russo já há-via tomado conhecimento da promessa feita e, durante muitos meses, o comunicado do Primeiro Ministro britânico criou embaraços para os Alia-dos e causou irritação na Grã-Bretanha, onde predominava o sentimento de que promessas devem ser cumpridas, e não restringidas.
Em sua arrogância, Hitler parece ter-se convencido de que, enquanto mantivesse a guerra às rotas marítimas, os Aliados jamais realizariam a invasão. Em um dos seus ataques de fúria, ele gritou para o Feldmarechal Paulus, comandante do Sexto Exército alemão na Rússia, que nem a Inglaterra nem os Estados Unidos, separados ou juntos, podem superar-me em gênio militar – e é isto, e não simples números, que sempre decide as vitórias.
Ao mesmo tempo, ele não poupou números ao ordenar uma nova o-fensiva no setor de Stalingrado, em outubro de 1942, e outra no Sul. As duas fracassaram devido ao maciço contra-ataque desfechado pelo Marechal Timoshenko, a 19 de novembro de 1942. Em 31 de janeiro de 1943, Paulus fora obrigado a render-se. Todas as tropas alemães de refor-ço, disponíveis, foram enviadas para o Cáucaso, mas os russos também revelaram habilidade estratégica. Antecipando-se ao movimento alemão, os reforços foram encurralados.
Se a Barbarossa, como campanha, foi o ponto decisivo em que Hitler começou a resvalar para a derrota, a contra-ofensiva de Timoshenko foi o pivô no qual se equilibrou a retirada final alemã. Tornara-se evidente, in-clusive para Hitler que a maré era agora favorável aos Aliados. Ele poderia muito bem ter seguido a sentença de Clausewitz: Aquele que não poupa o uso de forças, sem considerar o sangue derramado, consegue superioridade caso seu adversário use menor vigor na sua aplicação. Mas, nesse caso, seu adversário obedecera inesperadamente o mesmo ditado – e usara mais vigor.
Quem também usou mais vigor – ou estratégia mais ardilosa – foi o General Montgomery, na África, sendo seu adversário o General von Arnim, que substituíra Rommel na Tunísia. Ali, as batalhas finais da cam-panha africana foram travadas até 12 de maio de 1942, quando Arnim se rendeu. A Campanha da Africa do Norte chegara ao fim, diz Montgo-mery, e os sobreviventes do Eixo foram feitos prisioneiros. Tudo termi-nara num grande desastre para os alemães; tropas, equipamento e os su-primentos restantes foram capturados. Muito poucos conseguiram es-capar, graças à eficácia do bloqueio da Marinha Real e da Real Força Aérea, que fecharam os caminhos de fuga por mar e pelo ar. É inútil espe-cular por que as forças do Eixo tentaram manter-se na África do Norte... Do ponto de vista puramente militar não havia justificativa para a sua manutenção ali, mas talvez houvesse considerações políticas dominantes.
As considerações políticas não passavam do envolvimento de Hitler com seu companheiro do Eixo, que se revelou uma nulidade. Uma consi-deração muito mais insistente era a sua recusa em crer que qualquer coisa que dirigisse pudesse sair errada. Em várias oportunidades seus generais tentaram convencê-lo a render-se, quando a rendição era justificada – como às vezes sucede na guerra – para ganhar vantagens para o futuro. Com mais freqüência ainda, procuraram demovê-lo do que lhe parecia ser pura loucura em tática militar – como, por exemplo, a intenção de invadir a França logo após a deflagração da guerra, em 1939. Nesse e em outros casos, porque o desenrolar dos fatos não se deu como supunham, colhe-ram o escárnio de Hitler. Seu generalato só foi inteiramente solapado pela sua mania de poder individual quando viu a Rússia ao seu alcance; e mesmo então, ele poderia ter chegado à conquista, ou pelo menos poderia ter conseguido um resultado muito diferente na Frente Oriental, se não tivesse permitido que seu perverso ataque à Iugoslávia atrasasse o início da operação Barbarossa naquelas cinco semanas fatais.
Como as coisas estavam agora, em 1943, ele em breve veria seus exér-citos em retirada em todas as frentes. A invasão da Sicília começou a 10 de julho e a 17 de agosto estava terminada. Montgomery, cujo Oitavo Exército, juntamente com o Sétimo Exército dos Estados Unidos, reali-zaram a operação, chamou-a de o primeiro golpe no ventre do Eixo, na Europa. Foi um golpe bem sucedido, não só no sentido militar, mas tam-bém como medida política. Mussolini, cheio de ressentimentos por não conseguir influenciar Hitler, e levado à ignomínia pelos medíocres de-sempenhos das suas tropas, enfureceu-se com esse novo insulto ao Faz-cismo. Seu cunhado, o Conde Ciano, declarou que ele disparou uma seqüência de ordens e contra-ordens que deu a todos a certeza de sua incapacidade para dirigir o país. A 25 de julho, quando os defensores alemães da ilha foram obrigados a recuar para a costa norte pelo Sétimo Exército dos EUA, o ditador italiano foi forçado pelo rei à renúncia e foi imediatamente aprisionado pelo seu sucessor, o Marechal Badoglio. Este encetou negociações secretas com os Aliados e, a 3 de setembro, quando o Oitavo Exército cruzava o Estreito de Messina para desembarcar na ex-tremidade da Itália, assinou um tratado de armistício, que deveria perma-necer em segredo até que se fizessem os desembarques aliados em As-lerno. Dias depois (no dia 8), realizados os desembarques, a notícia da capitulação da Itália foi divulgada.
Felizmente para Hitler, os Aliados não prosseguiram nos desem-barques em Salerno com rapidez ou eficiência – um erro pelo qual Eisen-hower, o Comandante-Supremo, seria mais tarde criticado. A rendição final de todas as tropas alemães na Itália só ocorreria a 29 de abril de 1945. Mas, apesar da demora, o fato é que, depois de os Aliados terem garantido um ponto de apoio na Sicília, os exércitos de Hitler estavam condenados – porque essas e as anteriores operações anfíbias coordenadas haviam dado ao Comando de Operações Combinadas uma riqueza de ex-periências que foram de grande utilidade no lançamento da maior operação anfíbia de todos os tempos – a Overlord, a invasão da Normandia.
Em Soissons, apenas 32 quilômetros a leste de Compiègne, havia um complexo abrigo, à prova de bombas, que Hitler construíra para seu quartel-general para a operação Leão Marinho, em 1940. Às 9 horas da manhã de 17 de junho de 1944, ele chegou ali para uma reunião com seus generais. Rommel e Rundstedt estavam lá e o General Hans Speidel registrou a cena:
Estava pálido e insone, brincando nervosamente com seus óculos e com uma coleção de lápis de cor que segurava entre os dedos. Estava sentado, encurvado, numa banqueta, enquanto os Feldmarechais perma-neciam de pé. Seus poderes hipnóticos pareciam haver diminuído. Ele cumprimentou os presentes friamente. Depois, alteando a voz, falou a-margamente dos desembarques Aliados; pelos quais tentou respon-sabilizar os comandantes das forças de campanha. A reunião durou até as 16 horas. Ao meio-dia, Hitler engolira um prato cheio de arroz e legumes, que antes foram provados. Frascos de remédio estavam alinhados perto dele, e ele os ingeria um após outro. Dois homens das SS montavam guarda junto da sua cadeira.
Tudo indicava o caráter do homem e o estado da sua saúde física e mental: a rude arenga e a transferência da culpa dos seus ombros para os dos profissionais que odiava; a hipocondria; o medo que todo mega-lômano tem de conspirações (como veremos, era um temor fundado); e a incapacidade implícita, ainda que temporária, de enfrentar uma situação avassaladora.
Às 6,30 da manhã de 6 de junho, a primeira leva de cinco divisões invasoras britânicas e norte-americanas, transportadas em 4.266 navios e barcaças de desembarque, haviam descido nas praias da Normandia. Há-viam sido precedidas, às 2 horas da manhã, por mais de 3.000 aviões transportando tropas aeroterrestres; por um ataque aéreo de 2.219 bom-bardeiros iniciado às 3:40 h e por um bombardeio naval que começou às 5:50h. Fazendo comboio e cobrindo os desembarques, havia um total de 702 belonaves e 25 flotilhas de caça-minas; e no ar, 171 esquadrões haviam preparado o caminho antes do Dia D, atacando ferrovias, pontes e aeródromos. Essa imensa força estava sob o Comando-Supremo do General Dwight Eisenhower.
Em termos de homens em terra que se opunham a ela, havia uma força muito mais poderosa: 50 divisões de infantaria e 10 divisões Panzer. Mas estas cobriam uma área imensa – Normandia, Bretanha, o Passo de Calais, as Flandres, Holanda, a costa da Biscaia e a Riviera. Na Normandia, havia 9 divisões de infantaria e uma divisão Panzer. Encarregado dessa força defensiva, e dirigindo-a – tanto quanto qualquer dos generais de Hitler po-dia dirigir alguma coisa – estava o Feldmarechal von Rundstedt, Coman-dante-Chefe no Oeste. Mas, porque expressara a Hitler a opinião de que a França devia ser evacuada, e sua guarnição retirada para a fronteira ale-mã, a fim de se preparar para a invasão Aliada que estava evidentemente sendo planejada, Hitler o humilhara, dando ostensivamente o comando de todas as tropas na França ao Feldmarechal Rommel. Nesse dia, diz o General Speidel, ele maliciosamente colocou dois feldmarechais um contra o outro, sabendo que eles tinham opiniões divergentes, mesmo quanto ao método para defender a França. Assim, eles teriam de de-pender de Hitler para qualquer solução, demonstrando, dessa forma, a sua confiança nele.
Tendo sido obrigado a aceitar a decisão de que não haveria retirada para a fronteira alemã, Rundstedt afirmou que, para se defender a França, a melhor maneira seria manter o grosso do exército bem afastado da cos-ta, permitir que a força Aliada tomasse um ponto de apoio e, então, atacá-la por trás das defesas costeiras com tal potência que empurraria o inimigo de volta para o mar. Rommel era totalmente favorável à des-truição do inimigo durante o desembarque, para o que ele, naturalmente, exigiria poderosas guarnições de paia, apoiadas por reservas solidamente reunidas a poucos quilômetros da costa.
A solução de Hitler – uma decisão fatal – era um meio-termo. A julgar pela aparência, isto não era insensato. A infantaria seria mantida bem avançada e as forças mecanizadas ficariam na retaguarda. Mas os meios-termos raramente são satisfatórios nos momentos desesperados; e esta ocasião provou não ser uma exceção. O fato de o grande general estar aparentemente dirigindo toda a manobra do seu isolamento, na Toca do Lobo, não ajudava a ninguém. Por outro lado, a sua determinação de que nenhuma reserva seria lançada na batalha sem a sua aprovação foi um em-pecilho que teve conseqüência desastrosa.
Contudo, num dos seus raros momentos de percepção psicológica, ele tornou a provar sua capacidade como estrategista praticamente pela pe-núltima vez – a última seria nas Ardenas, no inverno seguinte – avaliando corretamente o ponto em que se faria a invasão. Rundstedt julgava que a frota invasora desembarcaria na parte mais estreita do Canal da Mancha, entre Calais e Dieppe. Mas Hitler, segundo o General Warlimont, do seu estado-maior, não achava que Eisenhower – de modo algum um general ortodoxo – faria qualquer concessão à ortodoxia. Era muito mais provável, disse Hitler, que o desembarque, se não for um gigantesco blefe, ocorra entre Caen e Cherburgo, porque eles precisarão de um grande porto, e que outro grande porto há por lá? Nessa conformidade, Rommel apertou as defesas na área da Normandia.
Mas, estar certo na avaliação prévia de um fato não tem muito valor se se estiver insensatamente errado na escolha das medidas para enfrentá-lo. Agir como um titeriteiro numa toca distante, em Berchtesgaden, e res-tringir a liberdade de ação de seus generais é o mesmo que cortejar a ruína.
A primeira das conseqüências desastrosas ocorreu antes do Dia D. Rommel só tinha uma divisão Panzer (blindada) na Normandia, colocada em Caen. Tendo-se convencido – aliás, não tinha como escolher – do pon-to de vista de Hitler sobre o local do esperado desembarque, ele pedira outra divisão Panzer para ficar próximo de St. Lô – onde, de fato, teria sido de grande valia para enfrentar os norte-americanos. Mas recusaram-na. Hitler, tendo-se comprometido com um método de defesa, estava deci-dido a manter sua força blindada na retaguarda, e a força adicional disponível mais próxima estava situada alguns quilômetros a noroeste de Paris, na outra margem do Sena. Isto de tal modo incomodou a Rommel, que ele decidiu ir até o QG de Hitler para dissuadi-lo. Como Hitler pro-ibira que seus comandantes fizessem viagens aéreas, devido às intensas atividades diurnas da Real Força Aérea, Rommel viajou por terra, a 5 de junho. Os relatórios meteorológicos lhe haviam assegurado que os ventos fortes e os mares agitados tornavam improvável qualquer tipo de invasão. (Eisenhower, na realidade, adiara o Dia D de 5 de junho para 6 por essa razão.) Portanto, ele primeiro dirigiu-se para sua casa, próximo de Ulm, para cumprimentar sua mulher no dia do seu aniversário, passando com ela aquela noite. Quando, na manhã do dia 6, ele se pôs a caminho de Berchtesgaden, a invasão já começara.
Portanto, foi do QG de Rundstedt na França que telefonaram a Hitler às 4 horas da manhã, tão logo os desembarques aeroterrestres deram a certeza de que a invasão estava para começar, recebendo uma resposta in-decisa. Hitler ainda dormia e Jodl não se atrevia a despertá-lo. Ele recusou-se categoricamente a liberar os Panzer. Estava certo de que os desembarques da Normandia não passavam de um ataque simulado e que em pouco tempo haveria um desembarque em grande escala no Passo de Calais, a Leste do Sena – quando o Panzer Korps de reserva servirá ao propósito adequado que o Führer lhe reservou.
Entrementes, à medida que um apelo após outro era feito e recusado, os norte-americanos haviam conseguido fixar-se em duas praias, e os ingleses em uma delas, e, em certos lugares, haviam penetrado 8 km para o interior. Daí em diante, o desembarque prosseguiu praticamente desimpedido.
Logo, dificilmente seria de surpreender que, na manhã de 17 de junho, Hitler falasse amargamente do seu desprazer ante o sucesso dos desembarques aliados. Já então a vanguarda garantira a ligação de todas as cabeças de praia numa frente contínua. Quatrocentos mil homens, 60.000 veículos e 100.000 toneladas de equipamentos haviam sido desembarcados. Os portos pré-fabricados, chamados Mulberries, haviam sido rebocados através do Canal e montados, e instalou-se o Pluto – (oleoduto submarino) para o suprimento contínuo de combustível. O domínio dos ares era absoluto. Com tempo bom, diz Eisenhower, todo o movimento inimigo cessa durante o dia.
Cego à desesperança da situação, que Rundstedt e Rommel tentaram revelar-lhe, Hitler não fez outra coisa senão berrar: Não haverá recuo! Vocês devem ficar onde estão! Rundstedt acrescenta: Ele nem sequer nos permitia mais liberdade do que antes para o movimento de forças que jul-gássemos melhor. Como não alterava suas ordens, as tropas tinham de continuar presas às suas linhas fendidas. Não havia mais plano algum. Estávamos simplesmente tendando, sem esperanças, obedecer às ordens de Hitler, de defender a linha Caen-Avranches a todo custo.
As únicas compensações que ele oferecia aos generais era a nova arma, a Bomba-Voadora V-1, que certamente terá um efeito decisivo na guerra se, como tenciono, for dirigida exclusivamente contra Londres, de modo a convencer os ingleses da necessidade de pedir a paz. Speidel diz que os dois feldmarechais sugeriam ironicamente que faria mais sentido dirigi-las contra as praias, onde os aliados e seus suprimentos com-tinuavam desembarcando. Desnecessário dizer que a crítica subentendida só fez despertar tremendo acesso de fúria no Führer. A única coisa que o acalmou foi uma sugestão de Rommel, de que visitasse o campo de bata-lha da Normandia para pessoalmente inspirar as tropas a morrer onde estivessem. Hitler concordou em fazer isso dali a dois dias, a 19 de junho.
A visita não chegou a ser feita. Ao anoitecer do dia 17, quando a conferência com os generais terminou e Hitler estava sendo levado para Compiègne, onde pretendia supostamente fazer alguma genuflexão ou se inspirar, uma V-1 a caminho de Londres acidentou-se e caiu com força destrutiva sobre o abrigo, em Soissons. Ninguém ficou ferido, mas Hitler, tão alarmado ficou por ter escapado por um triz, que fugiu com a máxima rapidez para Berchtesgaden. Era um eco do seu rápido desaparecimento do local do putsch de 1923.
A 20 de junho, os russos iniciaram nova e violenta ofensiva, que des-truiu toda a resistência alemã e em duas semanas cruzara a fronteira da Polônia, passando a, ameaçar a Prússia. Nada se podia fazer, exceto re-tirar reforços da Frente Ocidental – o que dificilmente ajudaria a deter a marcha sobre aquela região. Também o afastamento de Rundstedt não ajudou muito – Hitler o demitira a 1º de julho, porque expressara opiniões derrotistas, substituindo-o pelo Feldmarechal von Kluge.
Aliás, nada poderia agora alterar o curso dos acontecimentos, exceto um milagre. Os generais de Hitler não acreditavam em milagres, e muito menos na capacidade do Führer de levar a Alemanha senão à destruição total. Embora tivesse inspirado ódio em muitos dos profissionais por quem demonstrara desprezo, foi menos por ódio do que pelo desejo de terminar a guerra honrosamente para a Alemanha que eles conspiraram para matar Hitler.
A conspiração envolveu muita gente, mas quem colocou a bomba debaixo da mesa, no quartel-general, do Führer, a 20 de julho de 1944, foi o Tenente-Coronel Conde Clauss Schenck von Staunffenberg. Infeliz-mente, a bomba só causou ferimentos superficiais em Hitler, o que o le-vou a dizer a Mussolini, com quem se encontrou uma hora depois, que a Providência agira novamente, e que sua vida fora salva para que, por sua vez, pudesse ele salvar a nação alemã. Mas isso fez com que um medo paralisador infectasse o Alto-Comando nas semanas e meses que se se-guiram, pois a Gestapo de Himmler procurou implacavelmente todos os que tinham, ou poderiam ter tido, a mais leve ligação na trama, inclusive seus parentes. Mais de 5.000 foram mortos. Entre os suspeitos estava Kluge, cujo nome era citado nos papéis revelados pela investigação da Gestapo.
Tudo isso, diz Liddell Hart em The Other Side of the Hill, teve o efeito de reduzir mais ainda a chance que restava de impedir que os Aliados rompessem a frente Avranches-Caen. Nos dias de crise, o Feldmarechal von Kluge deu apenas parte da atenção ao que decorria na frente, pois estava sempre olhando ansiosamente, por cima do ombro, para o QG de Hitler.
Dias depois, tudo o que restava dos exércitos defensivos alemães na Frente Ocidental foi enredado no Bolsão de Falaise. Kluge foi demitido e suicidou-se, ingerindo veneno. Mas não foi a humilhação de ver-se des-tituído do comando que o levou à autodestruição: ele supunha – com toda razão – que seria preso pela Gestapo horas depois.
A 29 de julho, o Terceiro Exército norte-americano de Patton atravessou o Sena. O General Eisenhower comunicou que agora não havia nenhuma barreira entre ele e a Bretanha, pois o inimigo estava num esta-do de total desorganização. A invasão em si terminara. Segundo o Gene-ral J. C. Fuller, a vitória final estava garantida, independente do que acontecesse em qualquer outra frente. Entretanto, fora mais que uma vitória: fora uma revolução que destruíra as bases imemoriais da segu-rança marítima. Ela mostrou de maneira concludente que, daí por diante, dados os necessários recursos técnicos e industriais, nenhuma linha cos-teira, continental ou insular, mesmo quando fortemente defendida, estava segura. Ela provou que se tivesse dedicado apenas uma fração dos recur-sos à sua disposição entre 1933 e 1939 à solução do problema de cruzar o Canal da Mancha, Hitler teria ganho a guerra.
A vitória final podia muito bem estar assegurada, mas ainda havia muito tempo para se cometer erros e a maioria destes foi feito do lado ali-ado. O avanço para a Alemanha foi atribulado por curiosas falhas de orga-nização, inclusive por escassez de combustível. E, no intervalo que pode ser eufemisticamente chamado de reaparelhamento, reabastecimento e repouso, os alemães reuniram umas poucas e fracas divisões, e alguns pára-quedistas espantosamente ativos e corajosos, e causaram danos consideráveis, apesar dos seus reduzidos efetivos. Esse atraso limitado levou a outro mais prolongado, durante o qual se montou uma resistência bastante violenta ao longo da frente do Reno. Dera oportunidade a isso o choque de idéias sobre estratégia entre Montgomery e, do lado americano, Bradley e Patton. Eisenhower, naturalmente, relutava em aprovar sem res-trições a estratégia dos líderes britânicos ou norte-americanos e, uma vez mais, com os resultados tão funestos que Hitler colhera, recorreu-se a um meio-termo. Houve ali um choque de personalidades que na verdade nunca foi solucionado, como se veria nas memórias de pós-guerra dos generais envolvidos: e é difícil ver o que mais Eisenhower poderia ter feito nas circunstâncias. Ele transformara-se no que Liddell Hart chamou de a corda num cabo-de-guerra entre seus principais executivos.
Ao mesmo tempo, por mais que se possa ou não atribuir culpa ao antagonismo pessoal nos altos cargos, a causa mais profunda do fracasso dos Aliados em completar sua vitória em setembro de 1944 foi uma espécie de tédio, uma atitude injustificavelmente otimista de já ganhamos a guerra; agora, descansemos. Ela parecia permear as fileiras aliadas de alto a baixo e a isso Hitler reagiu com um dos seus vislumbres intuitivos de percepção psicológica. Foi o último, mas, com sua mente já mori-bunda, ele inspirou o mais audacioso dos contragolpes.
Na manhã de 16 de dezembro, um dia depois que Montgomery enviou a Eisenhower 5 libras para pagar a aposta de que a guerra estaria terminada no Natal, uma enorme – enorme considerando-se as circuns-tâncias desesperadas de Hitler – ofensiva foi desfechada na linda e ondu-lante região de florestas das Ardenas. Este era o lugar exato em que Hitler fizera sua penetração na primavera de 1940, sendo quase incrível que os Aliados, tendo toda a história da Segunda Guerra Mundial para lhes pro-var que estavam errados, deixassem ridiculamente a porta aberta uma vez mais – e pela mesma razão que a França a deixara aberta antes: porque consideravam as Ardenas uma região inadequada para o movimento de forças blindadas.
Logo ficou novamente claro que tal região não era inadequada. Hitler montara, de tudo o que pudera reunir do que restava dos seus tanques, e mais o que fora produzido durante outubro e novembro, um novo exército blindado, o Sexto Exército Panzer SS [28](27). Contra este, espalhadas espar-samente pela frente das Ardenas, havia apenas 4 divisões que foram rapi-damente penetradas por 7 divisões Panzer e mais 13 de infantaria, do 6º Exército Panzer SS, com efeito devastador. Além disso, houve o caos – limitado, é verdade – provocado nas linhas norte-americanas por Comandos alemães que, sob a direção de Skorzeny, disfarçados com uniformes norte-americanos e usando jipes capturados, cortaram comunicações, inverteram postes de sinalização, derrubaram avisos indicando a ausência de campos minados e, em geral, adaptaram-se ao uso perturbador da técnica do Cavalo de Tróia.
Eisenhower diz que, quando a notícia do contra-ataque chegou ao seu QG, em Versalhes, na tarde de 16, ele se convenceu imediatamente de que não se tratava de um ataque local e sem demora alertou as duas divisões que deixara de reserva. Mas estas chegaram tarde demais ao local para de-ter o ataque. Por conseguinte, o colapso final do Reich foi adiado por pouco menos de cinco meses – e por um custo muito alto para os alemães e para os Aliados, sobretudo para os norte-americanos, que suportaram a violência do contra-ataque.
Não que a campanha das Ardenas durasse cinco meses. Por volta do dia de Natal, o Terceiro Exército de Patton havia eviscerado o Sexto E-xército Panzer SS e Hitler entregou-se novamente a devaneios. A situação sofreu um tremendo alívio, disse ele a Rundstedt (que então fora reconduzido ao comando). O inimigo teve de abandonar todos os planos de ataque. Foi obrigado a reagrupar suas forças. Teve de usar nova-mente unidades que estão cansadas, e, na sua pátria, está sendo criticado e tendo de admitir que não há possibilidade de se decidir a guerra antes de agosto próximo, talvez não antes do fim do ano que vem.
Devaneios de verdade. A 1º de janeiro, as forças de Rundstedt es-tavam em franca retirada, e pelo final do mês as perdas totais alemães su-biam a 70.000 mortos e mais 50.000 prisioneiros, 600 tanques, quase 2.000 aviões e número incontável de veículos. A intuição do Führer resultara num plano brilhante, mas, como ele sempre superestimava seu valor e sua capacidade de controlar, também exagerou flagrantemente o seu poderio militar. Embora os Aliados demorassem mais do que deviam para se recuperar do choque recebido nas Ardenas, era verdade que a vi-tória já fora assegurada muito antes, quando o Exército de Patton cruzou o Sena e se completou a operação Overlord.
O colapso do Sexto Exército Panzer SS ocasionou um benefício imediato para os russos, pois na Frente Oriental nada se podia fazer para impedir o avanço dos seus exércitos. E, como diz o General Fuller, em qualquer guerra normal as hostilidades deveriam ter sido terminadas ime-diatamente [após a ofensiva das Ardenas]. Mas devido à exigencia de rendição incondicional, de parte dos Aliados, a guerra estava longe de ser normal. Amordaçados por esse lema idiota, os Aliados ocidentais não podiam oferecer termos, por mais severos que fossem. Inversamente, seu inimigo não podia pedir quaisquer termos, por mais submissos que fossem. Assim, como aconteceu com Sansão, restava a Hitler somente destruir o edifício da Europa Central sobre si próprio, seu povo e seus inimigos. Com a guerra irremediavelmente perdida, sua meta política era agora o caos e, graças à 'rendição incondicional', ele estava em posição de alcançá-la. A luta pela dominância entre as potencias ocidentais e orientais desde o término da guerra é outra história; mas, ao pôr essa luta em movimento, pode-se dizer que Hitler alcançou sua meta. O que sem dúvida lhe teria agradado.
Como exercício militar, a guerra prosseguia, a partir desse ponto, a passos largos. Colônia foi capturada a 7 de março; Frankfurt, a 29; a 20 de abril, aniversário do Führer, caiu Nuremberg, onde jorrara tão grande parte da doutrina nazista e onde muitos milhões foram vítimas do fascínio da personalidade hipnótica de Hitler. A 29, todas as tropas alemães na Itália depuseram as armas. Quase que no mesmo instante, Hitler assinava sua última diatribe, na Chancelaria em Berlim, enquanto o Exército Vermelho cercava a cidade. Era um documento em que atacava os judeus, os traidores, os capitalistas – e até mesmo Himmler e Göring, que, dizia ele, haviam-no traído, passando-se para os Aliados, envergonhando a nação alemã. Ele denunciou a todos os que o acusavam de ter objetivos belicosos e, no que provavelmente considerava ser uma despedida dignificante, acrescentou.
Não posso esquecer-me da cidade que é a capital desta Nação. Como nossas forças são pequenas para resistir ao ataque do inimigo neste lugar, e como nossa resistência será gradativamente desgastada por um exército de cegos autômatos (os russos), desejo compartilhar do destino que milhões de outras pessoas aceitaram, e permanecer aqui. Além disso, não cairei nas mãos de um inimigo que exige um novo espetáculo, ence-nado pelos judeus para divertir as massas histéricas. (No dia anterior, Mussolini fora preso ao tentar fugir para a Suíça, fuzilado por guerrilheiros italianos e exposto ao opróbrio público.) Portanto, decidi ficar em Berlim e aqui escolher voluntariamente a morte no momento em que me convencer de que a resistência do Führer não mais seja possível.
Horas antes, Hitler casara-se com sua amante, Eva Braun, numa cerimônia bizarra no bunker situado sob a Chancelaria. No dia seguinte, 30 de abril, às 15:30h, Hitler tomou de uma pistola e matou-se com um tiro na boca. Eva Braun ingeriu veneno, matando-se também. O corpo de Hitler foi envolto num cobertor por Heinz Linge, seu criado de quarto, e, juntamente com o de Eva Braun, foi ensopado de gasolina e queimado no jardim da Chancelaria. A visão da cabeça esfacelada de Hitler, disse um dos guardas da Chancelaria que testemunhara a pira fúnebre, era extremamente repulsiva.
Foi um fim adequadamente wagneriano para um homem que se cria o salvador da raça alemã. Se tivesse sido possível, sem dúvida teria como fundo musical a Entrada dos Deuses no Valhala. Mas nada mais se ouvia, exceto o fragor das bombas russas explodindo. O destino de Adolf Hitler – Führer, nobre lobo e protetor dos Gentios – consumara-se em chamas, entregue às forças que ele desencadeara sobre o mundo e sobre si mesmo[29].
Mortes na Segunda Guerra Mundial - (c) civis e militares (m)
Alemanha: 3 500.000 m - 800 000 c
Áustria: 230.000 m - 104.000 c
Bulgária: 10.000 m - 10.000 c
Finlândia: 85.000 mc
Hungria: 410.000 m - 280000 c
Itália: 330.000 m - 80.000 c
Japão: 1.500.000 m - 500.000 c
Romênia: 300 000 m - 260.000 c
Total do Eixo - 8.399.000
África do Sul: 9.000 m
Austrália: 29.000 m
Bélgica: 12.000 m - 16000 c
Brasil: 1900 mc
Canadá: 31.000 m
China: 2.200.000 mc
Dinamarca: 3.000 mc
Estado Unidos: 292.000 m
França: 211 000 m - 108 000 c
Grã-Bretanha: 397.000 m - 62.000 c
Grécia: 73.000 m - 140000 c
Holanda: 12.000 m - 198000 c
Índia: 36 000 m
Iugoslávia: 410.000 m - 1.280.000 c
Noruega: 6.000 m - 4.000 c
Nova Zelândia: 12000 m
Polônia: 320.000 m - 3.000.000 c
URSS: 7.500.000 m - 2.500.000 c
Total dos Aliados: 18.862.900
Total geral: 27.261.900
[1] As Cruzes de Ferro, instituídas na Guerra de Libertação de 1813, só eram concedidas em tempo de guerra, para ações em combate, e levavam a inscrição do ano de início do conflito. A concessão da Cruz de Ferro de 2ª Classe a Hitler não suscita dúvidas, mas, segundo o dossiê secreto que o terrível Heydrich conseguiu preparar sobre seu Führer, a de 1ª Classe fora conferida apocrifamente por Ludendorff, após a 1ª Guerra Mundial, para dar mais importância ao político estreante, que ele desejava favorecer. De fato, Hitler nunca a ostentou antes de 1925.
[2] O moral entre os soldados alemães manteve-se muito alto durante toda a 1ª G.M. O pedido de armistício, negociado secretamente por ordem de Ludendorff desde 10 de agosto de 1918, concretizou-se pública e repentinamente entre 10 e 11 de novembro, com grande surpresa e revolta dos combatentes. A atitude geral era: "Mas estávamos vencendo!..." Da decepção dos soldados da frente surgiu o mito da "punhalada nas costas", dada "pelos políticos", que "entregaram" a Alemanha no "Ditado" de Versalhes.
[3] Hitler juntou-se ao Partido como o sétimo membro do comitê. Sendo o 7 um número místico, especuladores do ocultismo vêem grande significação no fato. É certo que houve sempre muita influência mística, iluminista e ocultista entre os fundadores do nazismo, notadamente quanto ao "inconsciente coletivo". Drexler, fundador do Partido dos Trabalhadores Alemães, pertencia à sociedade secreta "Thule" (cujo símbolo era a suástica circular), fundada pelo renomado ocultista barão Rudolf von Sebottendorff, filho de um maquinista ferroviário, fundador do jornal Vülkischer Beobachter, que se tornaria órgão oficial nazista. Outros membros notáveis da "Thule", conhecidos, eram os príncipes de Thurn und Taxis, Max Sesselmann, Alfred Rosenberg, W. Rohmerder, presidente da Associação Escolar Alemã, Heinrich Jost, Rudolf Hess, Hans Frank. Karl Fiehler, Gottfried Feber. Dietrich Eckart. Dessas conexões esotéricas originaram-se as idéias confusas de Himmler sobre sua Ordem Secreta dentro das SS.
[4] A velha lenda alemã do flautista misterioso que salvou a cidade de Hamelin (Hameln) dos ratos, que se afogaram seguindo o som de sua flauta. Da ingratidão dos habitantes o flautista vingou-se, atraindo, com o som mágico da flauta, todas as crianças da cidade, que o seguiram e desapareceram para sempre. A similaridade alegórica com o fenômeno Hitler é exata.
[5] O apoio do Feldmarechal Erich Ludendorff a Hitler parece transcender as razões políticas, e basear-se sobretudo em causas místicas. Ludendorff era o verdadeiro senhor da guerra, de 1916 a 1918. sob a sombra prestigiosa do comandante nominal, o já velho Hindenburg, que colhia os louros. Com a paz, Ludendorff retirou-se para a Suécia, onde se entregou a práticas ocultistas. Ele já era secretamente um Irmão Morávio, e conduzia a guerra - às escondidas - segundo o calendário místico daquela estranha seita, com grande sucesso, aliás.
[6] Originariamente o livro chamava-se "Minha Luta de ½ anos contra Embustes, Falsidades etc. etc.". Seu editor, F. Eher, posteriormente reduziu o título para "Minha Luta" (Mein Kampf ). Este livro enfadonho, confuso mas revelador, tornou-se, lógico, um best-seller. Era obrigatoriamente presenteado pelo Estado aos noivos, em todos os casamentos realizados na Alemanha nazista. Hitler vangloriava-se de nunca retirar seus vencimentos como Chefe do Estado, vivendo exclusivamente dos direitos autorais; sua longa luta contra o imposto de renda foi, naturalmente, sobrestada durante o período em que esteve no poder, mas foi ressuscitada após sua morte, contra os herdeiros.
[7] Consta que seus companheiros de prisão em Landsberg o convenceram a escrever p Mein Kampf para se livrarem de seus soporíferos monólogos políticos.
[8] De fato, não há provas de que seu caso Geli (Angelika) Raubal tivesse passado do âmbito platônico. Hitler na época ainda estava em posição muito vulnerável para poder ocultar de seus inimigos políticos quaisquer deslizes escandalosos, que lhes daria excelente matéria de desmoralização. Cumpre notar também que a mãe de Geli, Angela Maria, meia-irmã de Hitler, após o suicídio da filha, continuou por muitos anos em sua companhia, como governanta, em Munique e, depois, no Obersalzberg (Berchtesgaden), embora fosse, como o Führer, de gênio muito intratável.
[9] Apesar de especulações que atribuem à escolha da cor parda (Braun) para as camisas do Partido Nazista razões patológicas e mesmo coprológicas, o motivo foi acidental. Rosshach, sturmhahnführer das SA, em 1924 descobriu a baixo preço, na Áustria, enorme estoque de camisas pardas, produzidas durante a guerra para envio às tropas alemães que lutavam na África Oriental (Tanganica).
[10] O cargo de Chanceler do Reich. na Alemanha, equivale ao de Presidente do Conselho de Ministros ou Primeiro Ministro, sendo, pois, o mais alto posto executivo. O regime alemão, tanto na monarquia como na república, era parlamentarista, através do Reichstag, ou Dieta Nacional, ficando a chefia do Estado com o Imperador (Kaiser) e depois com o Presidente. Com a morte do Presidente Hindenburg, Hitler, desdenhando o título presidencial – ou melhor, evitando as dificuldades legais em obtê-lo – declarou, por decreto, a coincidência das funções de Chefe do Estado e de supremo executivo no cargo de Chanceler do Reich, ao qual fazia sempre antepor seu título partidário de Führer. Assim, instituía na prática o Führerprinzip de Rosenberg e outros, princípio pelo qual só cabe à nação seguir as diretrizes indicadas pelo Führer, que encarna o espírito norteador de todas as aspirações da alma coletiva da nação – no caso nazista, também da Raça – personalidade sagrada que se sobrepõe a todo o individualismo, cujas manifestações são "cancerosas" e devem ser extirpadas implacavelmente. A tese do Führerprinzip foi muito invocada nos julgamentos dos criminosos de guerra nazistas, para exculpá-los de qualquer responsabilidade pessoal.
[11] A Luftwaffe (Arma Aérea) foi desde o início comandada pelo Reichsmarschall Göring. Compreendia a arma pára-quedista alemã e a artilharia antiaérea, tendo ainda enormes contingentes de infantaria que lhe permitiram a formação de várias divisões de campanha. Isto não se devia a novos conceitos táticos, mas sim a uma contraposição política ao poderio do exército. A Luftwaffe era a arma de preferência dos jovens nazistas, e seu fanatismo ao Führer era total. Só mais tarde foi suplantada em popularidade e destaque pelas Waffen-SS. A Legião Condor, que serviu a causa de Franco na Guerra Civil Espanhola, pertencia à Luflwaffe.
[12] A ocupação da Renânia foi feita com "pedacinhos de tropas", sendo empregadas até bandas de música isoladas, como a do Leibstandarte SS Adolf Hider, a guarda pessoal SS, pois o Exército teve de lançar mão de todos os seus fracos contingentes para assumir os dispositivos de defesa do território, à espera da possível reação militar francesa. O Estado-Maior-Geral seguia de Berlim os acontecimentos no maior pânico. Sabia que a mínima reação francesa - o envio de três regimentos de infantaria em guarnição nas proximidades - seria mais que suficiente para expulsar os "invasores". Mas, inquirido pelo governo francês, o Comandante-Chefe, Gamelin, achou que só poderia agir com uma mobilização geral, envolvendo a chamada de reservistas (apesar de o exército francês ter um oneroso e gigantesco efetivo, superior a um milhão de homens), conversão da indústria para a guerra, enfim, a alteração completa da vida nacional. Tal expediente, de qualquer modo, seria irrealizável, pois os governos parlamentares franceses eram debilíssimos, os gabinetes duravam apenas meses, quando não semanas, e a influência dos pacifistas era enorme. A guerra era um espectro medonho, que politicamente não podia ser, sequer, cogitado. Foi esta a primeira capitulação das democracias. O simples avanço dos três regimentos teria ocasionado a retirada imediata das débeis forças alemães pelo seu Estado-Maior, sem qualquer confronto, e a destituição do Führer manu militari, com pouca ou nenhuma resistência popular, pois o nazismo ainda não se havia enraizado na máquina administrativa e policial, e o pavor de uma guerra também dominava o povo alemão, nesse ano de 1934, quando sua intoxicação bélica, realizada por Hitler, mal havia começado.
[13] A Áustria foi tomada "pelo telefone", como Göring lembrou, entre risos, em seu julgamento em Nuremberg. O Primeiro-Ministro Schuschnigg, convocado a Berchtesgaden, fora violentamente ameaçado, e fizera importantes concessões aos nazistas austríacos, liderados por Seyss-Inquart. Hitler exigiu depois que o Presidente Miklas fizesse Seyss-Inquart seu Chanceler, para que formasse um gabinete totalmente nazista, sob a ameaça de invasão. Quando isto foi feito, Seyss-Inquart "chamou" as tropas alemães para ajudá-lo a manter a ordem. A entrada de Hitler em Viena teria apenas o aspecto de uma visita oficial, de caráter afirmativo e intimidativo. O plano era de, mais tarde, os nazistas austríacos votarem uma federação austro-alemã. Porém a recepção a Hitler, pelas multidões austríacas, foi tão entusiástica e triunfal que o levou a fazer imediatamente um Anschluss (anexação). A Áustria passou a simples província alemã e seu nome, Osterreich (País de Leste), foi mudado para Ostmark (Província de Leste). O exército alemão estava ainda muito mal equipado, e centenas de veículos e tanques, ficaram enguiçados pelas estradas. Ainda desta vez, o exército estava pronto para destituir Hitler, caso o incidente levasse a perigo de guerra, principalmente porque Mussolini, receoso de uma forte Alemanha em suas fronteiras, havia categoricamente protestado e apoiado o governo austríaco. Mas o dramático espetáculo das duzentas Mercedes negras desfilando em formação impecável pelas largas avenidas de Viena, conduzidas pelo Leibstandarte SS, com os figurões nazistas, debaixo do delírio popular, impressionou todo o mundo, e especialmente Mussolini. Mais uma vez a audácia do Führer e sua capacidade de encenação eram bem sucedidas, e o próprio Mussolini aderiu. Desta época data a crescente amizade entre o Führer e o Duce. À Europa estupefacta, os alemães podiam dizer, com razão, que o Anschluss atendia um óbvio anseio do povo austríaco.
[14] Os Montes Sudetos formavam a sólida fronteira noroeste da Tchecoslováquia, traçada pelos Aliados no Tratado de Versalhes precisamente por seu significado estratégico. Entretanto, a região era habitada, na maioria, por súditos alemães, antes contidos no Império Austro-Húngaro. Hitler teve a seu favor este elemento de certo valor moral, que reduziu a capacidade de argumentação das potências ocidentais, garantidoras, por tratado, da integridade territorial tcheca. Mas os alemães sudetos não eram uma minoria oprimida, dentro da nação tcheco-eslovaca. Só começaram a arregimentar-se e manifestar-se através de seu líder nazista local, Konrad Henlein, por ordem expressa de Hitler, para justificar suas exigências. Ocupados os Sudetos em outubro de 1938 pelas tropas alemães, com a anuência expressa no Acordo de Munique, a Tchecoslováquia ficou sem as fortificações permanentes de fronteira, ali construídas, e sem a defesa natural de sua posição. A porta para o coração do país estava aberta, para a invasão que despedaçou a Tchecoslováquia em março de 1939. Quando Hitler iniciou a crise dos Sudetos, o exército alemão fez seus mais elaborados preparativos para a deposição do louco que ousava desencadear uma guerra que aniquilaria a despreparada Alemanha. Mas a vinda de Chamberlain, e mais tarde de Daladier e Mussolini, a Berchtesgaden e a Munique, para as apaziguadoras "conversações", mostrou que o Führer sabia como tratar os pacifistas. As aclamações populares com que Chamberlain e Daladier foram recebidos na Alemanha demonstraram claramente que o povo ansiava por um acordo que evitasse a guerra que parecia iminente. Mas depois de firmado o Acordo de Munique, o prestígio "guerreiro" de Hitler atingiu o auge junto a seu povo, e nada mais o poderia deter.
[15] Depois de enfraquecida a Tchecoslováquia pela ocupação dos Sudetos, com a visível complacência das democracias garantidoras, Hitler ocupou as províncias da Boêmia e Morávia, criando um Protetorado, entrando – desta vez sob lágrimas – em Praga. Ele deixou para mais tarde a ocupação do restante da infeliz nação, a província da Eslováquia, que se viu tornada "independente", sob a garantia formal da Alemanha. Assim, a Polônia estava estrategicamente envolvida pelo oeste e pelo sul. A cidade de Memel, a 100 km da Prússia Oriental, foi "cedida" pela Lituânia e anexada, com uma faixa litorânea do mar Báltico. Ficaram pendentes duas questões: a Cidade Livre de Danzig – cuja população, altamente nazificada pelo seu líder, Albert Forster, clamava pelo retorno à "mãe-pátria" – e a do chamado Corredor Polonês, a faixa de território dada em Versalhes à Polônia, "para que tivesse uma saída para o mar, pelo porto de Gdínia. O Corredor Polonês era talvez o mais doloroso espinho no "Martírio da Alemanha", pois dividia o território nacional, deixando isolada a Prússia Oriental, berço das mais caras tradições prussianas. Meses antes da invasão da Polônia, houve uma reunião entre os Ministros das Relações Exteriores, Ribbentrop, e o Conde Ciano, que oferecia, em nome de Mussolini, os bons ofícios da Itália para a solução pacifica do problema. Ribbentrop esclareceu ao representante italiano que Hitler não queria solução para Danzig e o Corredor Polonês, que seriam tomados pela força muito breve, e não admitiria novamente a frustração de Munique, quando lhe arrebataram a oportunidade de iniciar a guerra em 1938.
[16] O pacto teuto-soviético de 24 de agosto foi, e é, um dos pontos negros do comunismo, e lançou a maior confusão e consternação em todos os partidos comunistas. Houve enorme defecção e cisões importantes, até que a "monolítica" linha do partido viesse a firmar-se um pouco mais. Até hoje os doutrinadores vermelhos têm dificuldade em explicá-lo, e passam sobre ele como gatos sobre brasas, com a alegação de que Stalin "magistralmente" ganhara tempo para a URSS. De fato, Stalin nada fez para preparar-se para a invasão alemã, que viria em 1941, e sua "genialidade" manifestou-se no imenso massacre que em 1936 atingiu maciçamente a oficialidade do Exército Vermelho, principalmente no alto comando, destruindo-o como instrumento de defesa. E a isto Stalin foi levado por falsa denúncia, habilmente arquitetada por Heydrich e Schellenberg, do SD das SS.
[17] Blitzkrieg - Guerra-relâmpago, foi o nome dado pelos alemães à sua nova técnica de campanha. O nome, ao contrário do que se julga, não se devia à rapidez das operações; a velocidade atingida, tanto na Polônia como na França, foi fator que surpreendeu aos próprios alemães. A tese central era a busca de brechas, com penetração profunda e ramificação de tais penetrações para estendê-las e buscar objetivos, como sucede com o relâmpago. A teoria inicial deve-se ao então ten-cel Fuller, teórico militar britânico, imaginada em 1917, e por ele chamada "técnica da água que se espalha", e que busca brechas e trajetos de menor resistência. A teoria foi expandida e codificada pelo cap. Liddell Hart, com a aplicação de fortes formações blindadas como cunhas de penetração, e apoio aéreo tático imediato e constante, substituindo a artilharia, tudo sem aguardar a consolidação dos ganhos, explorando ao máximo a surpresa e a penetração, com rompimento de comunicações e linhas de abastecimento em profundidade. Coube ao general Guderian a criação das divisões blindadas (Panzer) alemães, desde 1935, seguindo estes conceitos e aplicando os ensinamentos de Liddell Hart, desprezados como fantásticos pelos altos comandos britânico e francês.
[18] Segundo os depoimentos feitos a Liddell Hart, após a guerra, por Rundstedt, Brauchitsch e outros generais alemães, uma invasão anglo-francesa da Alemanha durante a campanha da Polônia teria sido esmagadora. Um simples fato, entre muitos outros estarrecedores: não havia na Alemanha munição de infantaria para mais de duas semanas de campanha. A de artilharia era ainda mais escassa, apesar dos retumbantes espetáculos demonstrativos de poderio militar encenados por Hitler. À Alemanha de 1939 aplica-se com propriedade o que foi dito da Itália por um historiador: "Era uma loja com todo o estoque nas vitrinas".
[19] Hitler com freqüência mencionava a Providência (Fügung) que, se o tinha guindado à testa da nação germânica, era para levá-la a altos destinos, e o haveria de proteger. Para o ateu Hitler (que, como bom político, nunca confessava seu ateísmo), essa "Providência" não é misteriosa; trata-se da simples superstição dos inseguros.
[20] A Quinta Coluna, expressão corrente durante a guerra, era o conjunto de simpatizantes, espiões, traidores, inocentes úteis e sabotadores, que solapava o moral, criava boatos, interferia nas comunicações, lançava a confusão geral, sabotando o esforço de guerra e mesmo as operações de campanha na retaguarda dos exércitos. A expressão originou-se na guerra civil espanhola, quando um general que comandava quatro colunas contra uma cidade afirmou que ela seria realmente tomada por uma Quinta Coluna, oculta em seu interior. Vários generais e várias ocasiões são indicados como originando a expressão. O estranho é que os historiadores jamais descobriram tal general; todas as indicações já foram positivamente eliminadas.
[21] O Parlamento Longo, que se reuniu em Londres em 1640, foi dissolvido por Cromwell em 1653, reconvocado em 1659 e novamente dissolvido em 1660, na restauração da monarquia.
[22] (23) Entretanto, havia mais de 40 divisões de campanha destacadas ao longo da "Linha Maginot", além de sua guarnição normal. A "Linha" realizara plenamente seu papel, economizar tropas, mas Gamelin demonstrou ignorância e incapacidade. Suas "Memórias" são um monumento à defesa do indefensável, onde ele manifesta seu maior cuidado em "não dar ordens, para não ofender seus subordinados". A todas as indagações de seu governo, respondia: "Perguntem a Georges" (Comandante-Chefe da Frente Norte). Este, como alma-irmã, repetia: "Perguntem a Billotte" (Comandante do 1º Grupo de Exército). E a resposta do pobre Billotte era: "Ainda não recebi instruções".
[23] "Barbarossa" aludia ao grande imperador Frederico I, Hohenstauffen, o da Barba Roxa, co-participante da 3ª Cruzada. A lenda germânica afirma que ele ressuscitaria um dia, para aniquilar os pagãos do Leste. A data de 22 de junho foi escolhida para a invasão por marcar o solstício do verão, adotado por Himmler como um dos feriados místicos da sua "Ordem Secreta" das SS.
[24] Stalingrado (hoje transformada em Volgogrado por Kruchov, após sua "desestalinização" da Rússia), segundo os preceitos da Blitzkrieg, deveria ter sido contornada e neutralizada. Mas o simples fato de levar o nome de Stalin, de quem o Führer se confessava admirador extasiado, cegou Hitler, e sua tomada tornou-se obsessão doentia - e mortal.
[25] Hitler tinha consciência de que sua idade avançava, e em várias ocasiões manifestou-se sobre a necessidade de desencadear cedo a guerra, enquanto tinha saúde e lucidez. Ele sabia que implacável moléstia o corroía e que devia correr contra o tempo. Albert Speer, em suas memórias, relata seus dois planos opostos para o futuro: o retiro para Linz, que transformaria na mais bela cidade do mundo, com construções fantásticas e imensos museus; e a manutenção do poder, com a construção de um palácio-fortaleza, para defender-se da indignação contra as medidas - tão terríveis que ele mesmo denominou de "altamente impopulares" - que iria tomar após a vitória.
[26] Entretanto, só as operações britânicas de comandos contra a Noruega fizeram com que Hitler ali mantivesse 375.000 homens, que poderiam ter sido decisivos na campanha russa.
[27] O Congresso dos Estados Unidos declarou guerra ao Japão em 8-11-41. Imediatamente Hitler declarou guerra aos EUA, seguindo-se a declaração da subserviente Itália em 11-11-41. Este ato de insânia deixou os "altos dirigentes" alemães perplexos, e o fato nunca foi digerido pela mente simplória do vistoso Ribbentrop, porta-voz oficial da declaração, que, sob julgamento em Nuremberg, constantemente se queixava de que, sem motivo, os Estados Unidos haviam declarado guerra à Alemanha.
O 6° Exército Panzer SS, composto das divisões 1ª Leibstandarte, 2ª Das Reich, 9ª Hohenstauffen, 12ª Hitlerjugend, e mais 4 Panzerdivisionen do exército, incluindo a famosa Lehr (Divisão-Escola), sob o comando de Sepp Dietrich, o velho guarda-costas de Hitler, que mal tinha competência para comandar um pelotão, visto ser incapaz de ler mapas. Esta foi a mais poderosa grande-unidade de blindados jamais constituída. O conjunto da campanha foi brilhantemente conduzido pelo velho e competente feldmarechal Gerd von Rundstedt, que sabia de antemão estar a guerra perdida. O 6° Ex. Panzer SS, depois de conseguida a ruptura da frente aliada (novamente através das Ardenas), foi retirado do comando de Rundstedt, por Hitler, para ser jogado na Hungria à frente do rolo compressor russo, onde se destroçou diante do Lago Balaton, e ao longo de suas margens, até seus restos atingirem Budapeste, onde os frangalhos das divisões foram dispersados.
No dramático cenário da montanha do Brocken – o Monte Calvo – no maciço do Harz, observa-se o fenômeno meteorológico do anti-hélio; sombras projetam-se do, sol contra as brumas que cercam o cume da montanha: é o espectro do Brocken. Segundo a lenda alemã, é neste local dantesco que os espíritos infernais se reúnem com as feiticeiras para, juntos, dançarem o medonho sabá, na última noite de abril, a Noite de Walpurgis. Nessa noite, em 1945, nos fundos de sua devastada Chancelaria, ateadas pelas mãos de suas dedicadas SS, as chamas consumiam o cadáver de Adolfo Hitler.
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